Com seu Guia Afetivo da Periferia, Marcus Vinicius Faustini lança projeto de memória coletiva da cidade
Por Laila Melchior
No currículo o cargo de secretário de cultura do município de Nova Iguaçu, a direção de documentários, montagens de peças e textos de teatro. Marcus Vinicius Faustini lança agora seu primeiro livro, o “Guia Afetivo da Periferia”. O guia faz parte da coleção Tramas Urbanas em parceria com O Instituto.
Em entrevista ao blog, Marcus conta um pouco sobre a nova obra:
LM: O livro não olha para a periferia munido do discurso da carência. Pelo contrário, propõe uma relação, como o título já informa, afetiva. Você considera esse olhar uma novidade?
MVF: Talvez, para quem olha de fora para dentro seja uma novidade reconhecer a expressão da experiência das vivências nos territórios populares como afetiva e estética. Entretanto, isso já acontece em outras linguagens como o samba, o funk, etc. A novidade é isso dentro da produção literária. O acesso a produção e a fruição com a literatura são decisivos para a radicalização da democracia no país. Só podemos reconhecer a experiência do outro através da expressão de suas subjetividades. Difundida, a literatura será uma linguagem que contribuirá muito na percepção do outro.
LM: Na sua opinião, qual é o lugar da memória para a população das periferias urbanas brasileiras?
MVF: Freqüentemente percebemos a memória como uma linguagem narrativa da classe média: biografias, reminiscências, etc. Personagens populares estão sempre representados como agentes de luta pela sobrevivência, do agora. Potencializar experiências de expressão onde os territórios e sujeitos populares aparecem também pela memória é apostar na diversidade das formas de viver neste país. Diria que pode,inclusive, contribuir para radicalizar a democracia.
LM: Como foi escrever o livro, quais foram as estratégias usadas no processo e quais recortes você preferiu dar?
MVF: Usei várias estratégias: anotações antigas, fotos ,objetos, pequenos textos em pequenos cadernos, gravação e transcrição em MP4 e depois reescrevia. Entretanto, a principal estratégia foi a fragmentação da voz do personagem em pequenos trechos de pensamentos ao longo da narrativa. Como método, gosto de trabalhar também com diálogo de elementos externos, além das potências interiores de criação. Neste livro usei o Guia Sentimental da cidade do Recife, do Gilberto Freyre e o Memórias sentimentais de João Miramar do Oswald Andarde como elementos de diálogo. O livro pretende também ser um gesto estético que demonstre a potência subjetiva dos territórios populares para além das representações atuais.
LM: O “Guia sentimental do Recife”, de Gilberto Freyre e o “Guia da cidade de Lisboa”, de Fernando Pessoa parecem ser, logo de cara, referências importantes para seu “Guia afetivo”. Há relação entre as obras? O que elas têm em comum? Onde divergem?
MVF: A experiência na cidade é uma estratégia narrativa presente na literatura. Esses livros me encorajaram a perceber como potência de linguagem a minha estratégia de escrever um guia afetivo da periferia.
LM: O seu cargo na Secretaria de Cultura de Nova Iguaçu tem influência na sua maneira de ver e sentir a periferia?
MVF: Meu trabalho como secretário é resultado de anos de militância cultural na metrópole. O artista não cria apenas objetos e representação, ele convoca para a ação. A experiência como gestor é a possibilidade de gerar ações em escala e com acesso amplo. A estética do poder público deve ser a escala. Nestes dois anos de trabalho, criamos o fundo de cultura municipal em parceria com a sociedade , um sistema de editais que descentralizou a produção cultural na cidade e uma participação protagonista da juventude em programas da secretaria, além da aproximação com a secretaria de educação em ações nas escolas públicas.
LM: Existe o projeto de formar guias afetivos para apresentar comunidades a partir do ponto de vista das suas memórias pessoais. Esse projeto vai começar pela Maré. Como será o trabalho desenvolvido nas oficinas? Quem serão os escolhidos para participar?
MVF: Será uma metodologia com linguagens artísticas para estimular o corpo e o território como elementos decisivos na criação da palavra. O resultado será um site, onde as memórias se tornarão histórias para reapresentar os territórios sobre o olhar de quem vive nela. A idéia é até 2014 recontar a história de todas as comunidades cariocas através do olhar de seus guias afetivos. O projeto nasceu da percepção de que um livro pode ser um disparador de ações e não apenas um objeto para ser lido. Começaremos em março. Jovens, adultos e idosos participarão da metodologia. Em cada comunidade fortaleceremos as organizações existentes.
LM: O livro em breve estará disponível na internet, no site da editora. Qual o significado disso?
MVF: Apostar na democracia, não no mercado.
LM: Para quem é feito esse livro?
MVF: Este livro é para quem acredita que a rua é lugar do encontro e não do medo. O contrário também.
Leia a resenha de Egeu Laus no Overmundo
Guia Afetivo da Periferia: Todos somos Centros
“Saber orientar-se numa cidade não significa muito. Requer ignorancia, nada mais.
No entanto, perder-se numa cidade, como alguém se perde numa floresta, requer um aprendizado especial”.
Walter Benjamim
As narrativas sobre as ruas do Rio, sempre despertaram meu interesse – pois me ajudam a re-construir permanentemente o meu Rio de Janeiro. Minha Autoviação que contem nomes como Radial Oeste, Piumbí e Piancó, Taylor e Moraes e Vale, Rezende e Gomes Freire. Ruas que comecei a trilhar (sim, andar é a melhor maneira de pensar) quando o autor do Guia Afetivo da Periferia tinha um ano de idade.
Mas, com algumas poucas e boas exceções, as narrativas que conheço são aquilo que se diz das viagens com guias turísticos: um jogo de cartas marcadas. Mesmo um Antonio Fraga, no seu Desabrigo, de 1945, elogiado por Oswald de Andrade, me parece uma apropriacão da linguagem das ruas para a sua literatura mas sem a fluencia da lingua de quem fala (quem viveu nas ruas percebe uma gíria usada fora do exato sentido ou contexto).
O Guia Afetivo da Periferia, de Marcus Vinicius Faustini, no entanto, mais que mostrar um vivido Rio “periférico” revela um rio interior e portanto “central”: os sentidos do próprio autor e por essa janela aquilo que, pelo jeito só os alemães conseguiram reduzir a uma palavra: weltanschaaung (a “visão de mundo” na falta de outra palavra).
Mas é interessante como, através de sua visão extremamente pessoal, descobrimos um Rio de Janeiro (e posso dizer um Brasil) moderno, que foi sendo construído da década de 1980 para cá. Um Rio sem políticas públicas mas com sons, cheiros, ruídos, visões, sobrevivências, desfoques, encontros, tramas, conexões, enfim construcões de toda sorte à margem dos poucos programas públicos mas contendo aquilo que Jane Jacobs considera essencial para a vida de qualquer cidade: a diversidade das pessoas com suas vontades.
Portanto, além de muito saborosa, é generosa a narrativa. Ela nos permite, ao olhar para o que fi(a)zemos, pensar sobre o que somos e quem sabe, nos ajudar a construir o que queremos. Algumas das bússolas deste século 21, vislumbradas neste Guia, já aparecem apontar alguns dos caminhos: A noção e a presença do Território como foco prioritário das ações urgentes para o desenvolvimento sustentável – parece ser um deles.
Faustini nos entrega, como presente, uma caixa natalina contendo um kit com um jogo de lentes que aproximam/distanciam (cinema, talvez?), além de cartas para embaralhar num moderno Jogo da Memória onde o objetivo é juntar pares por oposição e não semelhança, acompanhado de uma Fita com uma Trilha Sonora de Sons e Sentidos. Mas, repare: olhando bem você vai notar que no fundo da caixa está escrito Tupperware.
P.S. 1: Também gosto muito de conversar com as Caixas de Supermercado.
P.S. 2: Se puder, (para o seu Jogo da Memória) leia esse guia tendo ao lado Guimbaustrilho e outros mistérios suburbanos, de Nei Lopes, lançado em 2001.
Para ler os comentários gerados por esse texto acesse:
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