Ouvir, ouvir, ouvir
Quantas vezes estamos ouvindo uma pessoa falar e, de repente… simplesmente desligamos, começamos a criar argumentos e contra-argumentos para rebater ao que aquela pessoa está expondo? O som da voz vai ficando longe e interrompemos, educadamente, para colocar a nossa posição. Na maioria das vezes é difícil segurar o ímpeto de treinar, aconselhar, falar algo inteligente.
Outras tantas, tentamos mostrar que somos pessoas “abertas” e que vamos ouvir tudinho o que outro tem a nos dizer sobre nós mesmo, sobre uma situação qualquer. Mas, lá no fundo pensamos “ai, já sei tudo isso…”, “que pessoa mais chatinha, crítica demais…”. Qual é de fato a sua disposição para ouvir?
Temos vivenciado um excesso de falação e uma escassez do “ouvir”. É muito bom que tenhamos ganhado, nas últimas décadas, mais espaço para falar, expor nossas questões e é verdade que, de maneira geral, há mais respeito para opiniões divergentes. Muito se tem falado sobre “diálogos”, conselhos comunitários que devem ouvir o que a comunidade deseja, diagnósticos das necessidades e potencialidades locais, dentre outras metodologias. No entanto, o que estamos fazendo com todo este conteúdo colocado para fora?
O perigoso é acharmos que basta deixar falar que pronto, isso significa que somos bons ouvintes. Poucos ou quase nenhum de nós fomos ensinados a simplesmente ouvir de coração, mente e vontades abertos, como nos propõe Peter Senge e Otto Scharmer, professores no Massachesetts Institute of Technology (MIT), na Teoria do U, que trabalha processos de aprendizagem coletiva em diferentes níveis de percepção e mudança. Colocamos no lugar da atenção e da curiosidade o julgamento e as nossas apressadas opiniões. Estamos condicionados a ouvir o que queremos.
Ocorre que a premissa para que possamos ouvir, deixando de lado os preconceitos arraigados, as certezas construídas, as inseguranças por não saber, o ego e o medo das incertezas, é a relação de confiança. Confiar é um ato de fé no outro, é dar licença para que este se aproxime, é respeitar a inteligência do outro e baixar as “armas” para mostrar como se é de verdade. É esperar que o outro possa acolher nossos erros, desejos, sonhos, habilidades sem que os use contra nós mesmos. É ainda, torná-lo cúmplice, ainda que não compartilhe dos mesmos pensamentos e atitudes. O elo de confiança nos torna um múltiplo UM.
Mas, como falar de relações de confiança quando nos defrontamos com níveis tão baixos de capital social? Que terreno fértil temos para cultivar a prática do ouvir se pouco confiamos um no outro? E se, tantas vezes, lançamos mão da interação e da troca, para nos abster?
Muitas histórias neste sentido foram contadas no dia 22 de maio no encontro sobre Empreendedorismo e Sustentabilidade, no Rio de Janeiro, d´O Instituto (http://riodeencontros.wordpress.com/), como já citado no último texto do Coletivo. Emmanoel Boff, Ricardo Henriques, Marina Meirelles do CEBDS, todos trouxeram histórias permeadas pela nossa incapacidade de ouvir e de criar relações de confiança. “A questão da confiança é chave, porque é com ela que consigo projetar um futuro”, reflete Ricardo Henriques, para quem o “ouvir” deve ser um imperativo na nossa sociedade. E, se pararmos para refletir, na causa de muitos de nossos problemas diários, projetos que não cumprem seus objetivos, resultados que não dão modificam uma realidade, lá está o “não ouvir”.
Com o tecido social esgarçado, temos pouca prática em ouvir pessoas com opiniões diferentes – é mais confortável ignorar. Temos pouca curiosidade e interesse de compreender o universo particular de outrem – é mais fácil deixar as coisas como estão. E assim, vamos construindo vidas em paralelo que pouco se tocam, sentem-se, cheiram-se, vêem-se. O resultado do conjunto é que vamos nos DISTANCIANDO de um projeto comum de melhorar o que quer que seja, uma pessoa, um projeto, práticas educativas, uma comunidade, o mundo…
Em um dos trabalhos do Coletivo Interser identificamos uma enorme necessidade de aproximação entre os membros do Conselho de um Fundo de Desenvolvimento Regional e o público beneficiado das ações implementadas: ex-ribeirinhos, mineradores, extrativistas, índios que foram deslocados de “suas” terras depois da construção de hidrelétricas. Para a verdadeira aproximação dos públicos era preciso mais do que simplesmente escutar suas reivindicações, anotá-las e separar o que dava ou não para fazer. Dividimos o trabalho em dois momentos.
O primeiro ato consistiu em construir junto com a população local o “caminho”, as suas histórias, o que proporcionou um entendimento mais amplo do que os unia em torno de uma causa. Além disso, ao contar suas histórias sentiam-se mais autônomos e a busca por soluções foi uma consequência imediata. Acreditamos que ao mostrar interesse pela história do outro e ouvir atentamente sem querer concluir ou distorcer, abrimos espaço para a o nascimento da confiança.
O segundo passo, foi então, promover um encontro, cujo foco não foram as reivindicações pela falta, mas a busca por soluções pensadas coletivamente. E para o que não se tinha resposta, demos acolhimento, instigamos a reflexão, para depois planejar como encaminhar. Atos simples que geram uma injeção de ânimo e esperança para acreditar no dia seguinte. O tempo é muito importante neste processo, pois ele pode matar ou dar vida. Não pode ser longo nem ligeiro, precisa ser na medida para que as forças não esmoreçam.
Há que se buscar meios para nos reconectarmos uns aos outros. Para praticarmos o ouvir e cultivarmos a confiança. Para ouvir é preciso coragem e devoção.
Lembrando dos ensinamentos de Margaret (Meg) Wheatley, pesquisadora organizacional e presidente do The Berkana Institute, que sempre nos inspirou a praticar o ouvir: “Não são as diferenças que nos dividem. São os nossos julgamentos. A curiosidade de ouvir nos une novamente.”
*Raquel Diniz Ezequiel faz parte do Coletivo Interser. Este texto foi publicado originalmente no Mercado Ético