Água e política
“A água poderá assumir, de forma muito mais aguda, o papel que o petróleo tem hoje em diversos conflitos, ou que territórios tiveram em tempos passados e recentes. A diferença é que eu posso pensar na vida sem petróleo. Mas eu não posso viver sem água.”
A afirmação acima é de Henrique Lins de Barros, pesquisador do Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas (CBPF). Na entrevista exclusiva para o Blog d’ O Instituto, o pesquisador comenta esta e outras questões referentes a situação da água no planeta. Lins de Barros participa do Seminário Futuro das Águas, que acontece hoje e amanhã no Arte Sesc, no Flamengo, Rio de Janeiro. (Bruno Dorigatti)
Quando a questão da água começou a fazer parte da agenda política? O que mudou desde então até hoje?
Henrique Lins de Barros. Já na década de 1960 que a questão da água potável aparece como uma preocupação em diversas esferas acadêmicas e em movimentos sociais mais amplos. Acredito que na Rio 92 esta questão tenha assumido um papel importante a ponto de aparecer em algumas agendas políticas.
Segundo a ONU, até 2025, se os atuais padrões de consumo se mantiverem, duas em cada três pessoas no mundo vão sofrer escassez moderada ou grave de água. É possível reverter esse quadro? Quais os caminhos?
Henrique Lins de Barros. As crises anunciadas atualmente devem ser entendidas com certo cuidado. Atualmente vive-se muito uma “era do medo” e as campanhas feitas em torno de problemas logo assumem manchetes e fazem com que as pessoas fiquem inativas.
Ninguém pode afirmar que teremos uma crise tão grave em menos de 20 anos. Pensar que em cada 3 pessoas 2 estarão sofrendo com a escassez de água é anunciar um pesadelo terrível. O que não tem sentido é se anunciar e nada ser feito para evitar tamanha catástrofe.
O problema da água potável está intimamente ligado a um modelo econômico que tem concentrado a riqueza de uma forma muito eficiente (90% da riqueza está na mão de 1% dos habitantes) sem que traga uma melhoria no bem estar (índices como IDH ou PIB medem o quanto se gasta ou o fluxo de dinheiro, mas não medem a qualidade de vida) – a maior parte deste dinheiro é usado para a segurança, o pagamento de planos de saúde, a estrutura penitenciária… Robert Kennedy escreveu logo antes de ser assassinado: Em resumo, o PNB mede tudo, menos o que faz a vida valer a pena (ver p. 11 do livro A arte da vida, de Zygmund Bauman – Ed. Zahar).
Um exemplo recente: com a crise americana gastou-se mais para salvar bancos ou indústrias do que o que seria necessário para melhorar de forma significativa a qualidade do ambiente degradado.
O senhor afirma que para produzir um cabo USB são necessários mais de mil litros d’água. Para produzir um quilo de carne bovina são necessários entre 10 mil e 40 mil litros de água (contada desde a procriação e manutenção até o abate). Como seria possível diminuir essa quantidade desproporcional, a princípio?
Henrique Lins de Barros. O que me chama a atenção é o fato de que uma conexão USB é um produto descartável que é produzido aos milhões e que poderia ser substituído por outro tipo de ligação. Esta outra ligação poderia ser um pouco menos confortável, mas funcionaria.
E as conexões atuais em breve estarão sendo descartadas e substituidas por outra ‘mais moderna’, pois é assim que se gira o mercado.
Já uma vaca não é descartável nem um luxo. Ela faz parte, na nossa sociedade, de uma cadeia alimentar. É claro que poderemos comer outros alimentos, que, por sua vez, irão consumir água do mesmo jeito. Mas é impossível humanos viverem sem comer e é naturalmente possível viver sem o conforto de artefatos produzidos e consumidos sem se levar em conta o custo ambiental que eles carregam.
Falta uma política de Estado para evitar a poluição das reservas e a redução do uso da água pela indústria, o senhor afirma. Qual seria uma política ideal, e uma política real que já poderia ser aplicada neste momento?
Henrique Lins de Barros. Não se trata de elaborar uma política que está, em última instância, dentro de um modelo econômico que tem como principal objetivo aumentar o lucro. Veja o exemplo atual: estamos vivendo uma crise que surgiu em outro país por causa de uma política inconseqüente. A saída que se pensa é aumentar a produção de automóveis, por exemplo, para evitar o aumento de desemprego. Ao mesmo tempo, se procura reduzir o uso de automóveis para reduzir a poluição. Existe, claramente, uma contradição.
O que ocorre é que a resposta do ambiente é muito mais lenta que as ações que estão sendo tomadas.
Os casos de privatização da água tornam-se cada vez mais freqüentes. A Nestlé vem construindo um monopólio, domina quase 20% das vendas mundiais de água, e no Brasil é dona das marcas Aquarel, São Lourenço, Petrópolis, Perrier, San Pellegrino e Acqua Panna e mais recentemente, Santa Bárbara, além de ter sido proibida de explorar água em São Lourenço, Minas Gerais, em 2004. No planeta, o mercado de água privatizada é controlado por quatro empresas, três delas francesas, outra alemã, segundo dados do Le Monde Diplomatique de 2005: “Atualmente, as ‘Três Irmãs’ [Veolia, Ondeo e Saur] controlam 40% do mercado mundial da água privatizada em mais de 100 países. O único rival no setor, que ocupa a terceira posição mundial, é a RWE (gigante da energia na Alemanha) e sua filial britânica, Thames Water, que obteve êxito ao se instalar no mercado americano, via aquisição da líder nacional American Water Works.”. Como combater essa crescente privatização da água?
Henrique Lins de Barros. No momento em que a água passa a assumir a posição de uma riqueza, ela começa a ser disputada como as demais riquezas naturais. Pensar que a solução dos problemas econômicos ou sociais está relacionado com a privatização tem se mostrado uma péssima estratégia. A água, desta forma, aparece como as demais reservas naturais e a política deverá ser a mesma. Sem dúvida, a privatização é um mecanismo que privilegia alguns em detrimento de muitos e não parece ser o caminho mais apropriado para se elaborear políticas de estado que visam a preservação ambiental.
Muito se fala sobre a água ser a causa de grandes guerras em um futuro próximo. Mas, de certa forma, isso já acontece, por exemplo, na disputa por territórios que envolvem Israel, Cisjordânia, Líbano e Síria? Sem entrar nas questões ideológicas que permeiam esse conflito há mais de 60 anos, como vê o papel da água nessa disputa? E já é possível vislumbrar, atualmente ou para breve, outras guerras motivadas pela disputa do acesso à agua?
Henrique Lins de Barros. A água poderá assumir, de forma muito mais aguda, o papel que o petróleo tem hoje em diversos conflitos, ou que territórios tiveram em tempos passados e recentes. A diferença é que eu posso pensar na vida sem petróleo. Terei menos conforto, ou, pelo menos, menos sensação de conforto. Mas eu não posso viver sem água. Esta situação é impensável e uma guerra motivada pela falta de água potável, se algum dia ocorrer, será dramática, pois estará se lutando pela manutenção da vida.