Ecos das passeatas
Por Manoel Ribeiro*
Eu fui às passeatas. À primeira, acompanhando meu filho de 17 anos e a namorada. À segunda, sozinho, rejeitado por meus “protegidos” que se negaram a continuar no papel de guias da terceira idad
História
Minha insistência em acompanhar o jovem casal se deveu às lembranças que eu tinha das passeatas dos anos 60, dos cavalarianos batendo com sabres nos manifestantes ou do corredor polonês na desocupação da faculdade da Praia Vermelha.
Naquele tempo, organizar uma passeata era um perrengue: na faculdade, grupos iam de sala em sala, pediam licença aos professores e faziam a convocação. Às noites, a galera saia pelas ruas colando cartazes nos postes e muros. Nesse ou naquele apartamento, reuniões para se acertar estratégias de comunicação, palavras de ordem e quem fazia o que.
Nesse processo, surgiam naturalmente lideranças e pautas de revindicações iam se estruturando.
Contemporaneidade
Nas passeatas contemporâneas, ou mais propriamente “MANIFESTAÇÕES”, a mobilização é uma moleza. As redes sociais são um instrumento fascinante e eficiente para a comunicação. A garotada é craque nesse item.
Mas algumas coisas me surpreenderam nesse “revival” de ativismo político. Primeira, a total ausência da polícia, apenas uns poucos guardas municipais numa ou outra esquina.
Na concentração de chegada, na Cinelândia, não teve discursos e o carro de som ficou parado na altura do Edifício Avenida Central. Não havia palavras de ordem nem “comícios relâmpagos”.
Cada participante carregava seu próprio cartaz e a alegria estava estampada nos rostos jovens, motivada pelo simples motivo de estar “acordando o País”.
O mais estranho é que, tão logo o povo chegava na Cinelândia começava a dispersão. (Não vou falar dos grupos promotores dos distúrbios pós passeata, para não me desfocar do que realmente interessa nesse nosso encontro).
Repercussões – parte 1
Nos dias seguintes intelectuais e formadores de opinião se esforçavam para interpretar o movimento, que extrapolava em muito a questão do preço dos transportes.
Críticas quanto à ausência de uma pauta bem organizada ou quanto à ausência de lideranças com quem se pudesse “negociar” pontilhavam as páginas dos principais jornais e comentários das mesas redondas nas TVs.
Num primeiro momento, ninguém percebeu que estávamos diante de novos paradigmas de participação, que prescindiam desses elementos, característicos da era pré-digital. Ninguém reconhecia a rica diversidade, o individualismo e a fragmentação como fenômenos intrínsecos à pós-modernidade neo-liberal.
Outra acusação recorrente era contra a rejeição aos partidos políticos, expressa na retirada das bandeiras partidárias e nos cartazes do tipo “Eles não nos representam”.
Também nesse caso, ignorava-se que o controle do sistema financeiro internacional sobre os governos nacionais vem afastando os governantes dos indivíduos que os elegeram, esmaecendo a efetividade da democracia representativa, na solução dos complexos problemas das sociedades contemporâneas. Na crise europeia esse fato é muito claro.
No quadro político brasileiro, a mesma tendência é radicalizada pela transformação das casas legislativas e dos executivos, em todos os níveis, em balcões de negócios e postos de acesso a privilégios (como nos recentes casos das “caronas” nos aviões da FAB).
Em nosso país, negociatas e privilégios são protegidos com ardor, diante do temor do “rebaixamento social”. A recente chegada das classes C e D às possibilidades de consumo, para alguns, é uma “aproximação” ameaçadora e inaceitável.
Outro dia, uma “socialite” expressou com clareza e descaradamente esse sentimento, ao dizer que tinha perdido o gosto de ir a Paris, quando, desembarcando em ORLY, encontrou o porteiro de seu edifício.
Outra repercussão destacada pelos jornais refere-se ao clamor pela punição aos corruptos. Não que eu tenha restrições a punir os corruptos, mas acho fundamental que essa providência não satisfaça à vontade de transformação do País.
O fundamental mesmo é por em discussão os meios e modos, os sistemas, que engendram e acobertam esses “malfeitos” – públicos e privados.
Repercussões – parte 2
No plano prático, alguns políticos mais sensíveis à voz das ruas, ou amedrontados diante da pressão do eleitorado, desengavetaram providência há tempos proteladas.
Arquivaram a PEC 37; propuseram mais verbas para educação e saúde; pretendem acabar com votos secretos nas câmaras; discute-se a eliminação dos suplentes de senadores, bem como as coligações partidárias e os votos de legenda que permitem um Tiririca levar consigo mais 4 ou 5 deputados de partidos desconhecidos etc.
E nós, os arquitetos?
Considerando a tradição do IAB em esposar causas de interesse público, não poderíamos nos furtar de trazer apoio aos pleitos levados à rua pela juventude carioca, sem discursos de fundamentação teórica ou argumentos exaustivos, apenas dando segmento ao que a sensibilidade popular já listou como de interesse público.
Nossa contribuição deve se restringir, no âmbito de nossas habilitações profissionais e cidadãs, a colaborações sucintas e objetivas no desarme dos já citados mecanismos que engendram os e ocultam os “malfeitos” endêmicos que prejudicam a democratização do acesso à cidade, enquanto um direito de todos.
Proposições
Assim, recorramos diretamente aos produtos do caos criativo da juventude nas ruas, adotando os pontos já definidos, sem necessidade de palavrórios introdutórios ou fundamentos teóricos .
1. Contra a corrupção
Atualmente, as grandes obras públicas, sob a justificativa da “urgência”, são licitadas apenas com o, assim chamado, “projeto básico”, cujo futuro detalhamento é de responsabilidade das empreiteiras que vierem a vencer as respectivas licitações.
Tal prática é o fator preponderante nos casos de superfaturamento e reajustes descabidos nos preços de obras públicas. Licitar tais obras sem um projeto executivo completo, arquitetônico, de cálculo estrutural, de instalações, infraestruturais etc, com especificações e respectivos quantitativos ao ponto de permitir a elaboração de um orçamento detalhado e confiável, a nosso ver, é que enseja os tais malfeitos responsáveis por desvios nos recursos públicos.
Além da reforma da legislação que regula a questão, será indispensável envolver o Ministério Público, com o apoio técnico do CAU e do CREA, na fiscalização das práticas licitatórias.
2. Eles não nos Representam ou Pelo Direito à Cidade
Consideramos como direito à cidade a equânime distribuição espacial do acesso aos serviços urbanos de qualidade. Tais serviços se referem ao abastecimento de água potável, ao esgotamento sanitário e seu adequado tratamento, aos equipamentos públicos, como escolas, creches, instalações de saúde, espaços de esporte e lazer, amenidades e facilidades de deslocamento articulado em transporte público, a pé ou de bicicleta.
Para que esses princípios sejam atingidos, sobretudo a nível municipal, as decisões sobre a alocação dos recursos públicos devem refletir as vontades das populações e com elas serem discutidos, de modo a formarem programas plurianuais de investimentos, no sentido de tornar as cidades uma obra coletiva em prol do bem comum.
Para que a participação popular nessas questões se dê com a fluência e consistência necessárias, será preciso fortalecer os diversos conselhos populares municipais existentes, bem como desenvolver processos de capacitação de seus integrantes.
Outro aspecto fundamental para a retomada do planejamento participativo é a ampliação do rol de objetivos da disponibilidade de recursos federais, hoje voltados apenas para a realização de obras, também para a elaboração de planos, programas e projetos, que venham a definir com precisão o perfil e custos de tais obras.
*Manoel Ribeiro é arquiteto e urbanista, conselheiro d’O Instituto. O texto acima foi extraído d epalestra proferida no Instituto dos Arquitetos do Brasil (IAB)