“A água é escassa, mas o bem mais escasso é o dinheiro” | Mesa 1 (continuação)
Por Bruno Dorigatti
Fechando o primeiro dia do Seminário Futuro das Águas, Paulo Canedo, engenheiro da Coppe/UFRJ e co-autor do livro O espírito das águas (Novas Direções, 2008) apresentou dados, mapas e estatísticas sobre o tema. Apesar de ser um quadro muito preocupante para o planeta, nosso país tem tudo para aproveitar a condição especial de grandes reservas de água doce, as maiores do mundo, e sair da atual situação crítica em algumas regiões do país.
Segundo ele, a quantidade de chuva anual no planeta é imutável, não se perde. Ela evapora, se precipita, mas está dentro do sistema atmosférico. Em seguida, apresentou mapas com as precipitações no planeta. A América do Sul é uma das regiões com mais precipitações. Já a América do Norte resolveu seu problema natural de carência de precipitações através de transposições de rios. “Transpor água pode ser uma racionalidade humana, de suprir regiões onde a chuva não chega com águas que sobram em regiões que choveu muito. Este é um bom exemplo de que os norte-americanos conseguiram dar a volta por cima em um problema natural, a carência de chuvas”, afirmou Canedo, destacando o Canadá como o país que mais realizou este tipo de obra. A Ásia e a África, por sua vez, são regiões que enfrentam sérios e crescentes problemas. A seguir, o engenheiro mostrou dados relativos à quantidade de água por habitantes, onde a situação mais premente encontra-se na Índia, no Oriente Médio e no norte da África.
A Revolução Industrial já foi apontada como a grande vilã quando se fala em poluição das águas. Hoje, esse posto é ocupado pela poluição doméstica. “As indústrias fizeram parte do seu trabalho, mas os seres humanos não fizeram, o que ocasiona a falta de tratamento de esgoto antes de ser lançado nas águas. A qualidade de saneamento do planeta é adequada na América do Norte, Austrália e Europa. Já aqui no Brasil temos um plano de saneamento precário”, acrescentou. Canedo mencionou a fala do deputado Fernando Gabeira, para quem poderá haver conflitos bélicos motivados por questões hídricas. “Não sei se chegaremos a conflitos bélicos, mas haverá conflitos diplomáticos com absoluta certeza”, frisou o engenheiro da Coppe, que citou alguns já em desenvolvimento, como na região do Mar Aral, na Ásia, na região da bacia dos Rios Tigre e Eufrates, que corta a Turquia, Síria, Iraque e Irã, e na região do Rio Nilo, que atravessa oito países africanos, além do Egito.
Em seguida, Canedo apresentou a relação entre a concentração populacional e a quantidade de água disponível por região. A Ásia possui 60% da população do planeta, mas apenas 36% da água potável disponível. A Europa possui 13% da população mundial e 8% da água; na África, os dados são, respectivamente, 13% e 11%; na Oceania, 1% da população, e 0,5% da água. O continente americano é o mais privilegiado. Enquanto a América do Norte tem 8% da população da Terra, possui quase o dobro da água, 15%. E a América do Sul, com também 8% da população, dispõe das maiores reservas, com a região amazônica e o Aqüífero Guarani, chegando a 26% de água potável disponível, mais de três vezes a sua população. “A região que engloba a Europa, a Ásia e a África possui metade da água do planeta, mas a sua população chega a 6/7, ou 86%. Está aí a maior pressão. Na Ásia, os aqüíferos estão mortos ou morrendo, devido ao mau uso. A vulnerabilidade hídrica deste três continentes deve servir de alerta para o planeta inteiro.”
Um dos problemas que levam à escassez de água é o crescimento populacional, que deveria ser seguido pelo consumo do precioso líqüido. Não é o que acontece, porém. O consumo de água no último século cresceu seis vezes enquanto que a população teve um aumento de 2,5 vezes. Atualmente, 40% da população mundial vive sob alguma forma de estresse hídrico, o que representa 2,5 bilhões de pessoas, número que, segundo as projeções, deve alcançar 5,5 bilhões em 2025. Um bilhão de pessoas (ou 18% da população mundial) não têm acesso à água com qualidade potável. “A água como um bem econômico, ou a água como um bem social é uma discussão tocada por esse ponto. E estas pessoas estão muito mais perto da gente do que imaginamos”, acrescentou. Outro dado alarmante diz respeito ao acesso a saneamento básico adequado, onde 40% da população, ou 2,5 bilhões de pessoas, não o possuem.
A produção de alimentos é quem absorve o maior uso da água no planeta. A demanda por esse uso vem crescendo extraordinariamente, muito mais do que se podia imaginar. A água para a irrigação cresceu 60% desde o início da década de 1960. Em torno de 70% do uso industrial de água se destina à produção de grãos para a alimentação humana e animal. A eficiência das técnicas agrícolas ainda é baixa, em torno de 40%. Técnicas como o gotejamento, que economizam uma parcela considerável de água ainda são pouco ou subutilizadas. “Uma parte significativa de lençóis subterrâneos da África e da Ásia estão sendo explorados sem sustentabilidade. Ou seja, eles não podem continuar retirando o que está sendo retirado, pois morrerá em breve. Em algum momento, aquele manancial não mais abastecerá. Portanto, a irrigação para a produção de alimentos nestes locais pode levar a uma crise de abastecimento”, alerta Canedo.
A respeito do consumo de água pelas crianças, uma que nasce e cresce no mundo desenvolvido tem o direito de consumir 40 vezes mais água que outra que passa o momento inicial da vida no chamado mundo em desenvolvimento, por conta da falta de acesso à água. Morrem seis mil crianças por dia devido à falta de água tratada. Internam-se 250 milhões de pessoas por ano em decorrência da falta de acesso à água tratada, ocupando metade dos leitos hospitalares disponíveis. “Podemos aumentar os hospitais, ou, o que é mais barato, levar saneamento a estas pessoas.” Segundo a ONU, deveriam ser gastos US$ 180 bilhões por ano, mas o investimento em água não chega a metade desse valor, ficando em US$ 70 bilhões. “A cada ano, o buraco vai ficando maior”, pontua o engenheiro da Coppe.
Brasil
Falando mais especificamente do Brasil, possuímos um quarto da água do mundo e uma pequena população, o que nos dá uma situação de relativo conforto. Somos rico em água, temos uma posição de absoluto destaque, disparado na frente dos demais. O segundo colocado, a Antártida, possui muita água gelada, nós possuímos muita água correndo na superfície – muitos países possuem apenas água subterrânea, onde é preciso eletricidade para resgatá-la. “E, além de termos um manancial subterrâneo extraordinariamente grande, temos a água mais barata do mundo. Temos ainda grandes insolações tropicais em todo o território, durante todo o ano; clima sempre bom para plantar; temperatura média de 20o C, ótima também; oito grandes biomas, com a mais ricas flora e fauna do planeta. Este clima úmido garante que nossos rios sejam perenes, com exceção dos rios no sertão nordestino. E, além de poder abastecerem as cidades, eles servem ao transporte pluvial, ainda que subaproveitados, além de poder gerar uma matriz de eletricidade absolutamente limpa, a matriz hidrelétrica. Cerca de 80% de nossa energia elétrica vem da água. Além disso, temos reservas subterrâneas que ainda pouco usamos.”
Apesar de toda essa riqueza, por incrível que pareça, o Brasil vive problemas hídricos. As principais razões são: 1) a distribuição desigual pelo território nacional. A maioria de nossa água está onde temos a minoria de população, na região norte do país. E temos regiões com o oposto, carência de água, como a cidade de São Paulo, que tem que buscar água potável cada vez mais longe; 2) a maioria de nossas cidades tem problemas com a qualidade de água urbana. Quando não com a qualidade, é com a quantidade, com os excessos – estamos acabando de sair de um período de chuvas intensas, com enchentes espalhadas pelo país – e a falta de água pótavel.
Isso deriva da falta de planejamento urbano para a ocupação do solo, completa falta de infra-estrutura urbana para a coleta e tratamento do lixo, precária fiscalização dos efluentes industriais, ocupação descontroladas de áreas ribeirinhas. Cada vez é necessário buscar água mais longe, e perde a população, que fica sem saúde, e também o meio ambiente, que fica sem todo seu potencial. No Brasil, a maior causa de mortes vem da diarréia, derivada especialmente da falta de saneamento. O investimento mais barato, portanto, não seria em leitos hospitalares, mas em saneamento. “Não resta dúvida que falta prioridade nacional à questão do saneamento. A prova é que, para fazer a próxima ligação de luz, dar continuidade a extensão, gasta-se R$ 10 mil. Para continuar extendendo a ligação de esgoto até a próxima residência que ainda não possui, gasta-se R$ 1 mil. Ou seja, o Brasil dá dez vez mais prioridade à eletrificação do que à coleta de esgoto. Então não tenho dúvidas que a primeira coisa que falta é prioridade, e por isso que esse tipo de reunião é importante, porque traz o debate à sociedade. ”, afirma Canedo.
O que pode ou poderia ser feito? Para Canedo, “se nós investirmos para melhorar a água brasileira, podemos colocar o Brasil em uma posição de destaque mundial no setor de agroenergia e produção de alimentos. O futuro na Europa, Ásia e África é ruim, como vimos. Essa pressão, cada vez maior, aumenta a vantagem comparativa que o Brasil tem com os outros países. Não temos grandes pressões naturais na água, temos pressões que nós mesmos criamos. E podemos combater isso fazendo o dever de casa. Temos muita terra fértil, muita água, muito sol, muitas hidrovias, muitos quilômetros de litoral. Somos líder mundial na produção de açúcar, álcool, soja, fumo, laranja, café, frango e carne. A agropecuária responde por uma parcela expressiva do PIB”.
Poucos países podem ter uma perspectiva futura de ter sustentabilidade hídrica e ambiental como o Brasil. Mas, para isso, é preciso continuar a ter a disponibilidade hídrica e saber como bem geri-la, e só vamos conseguir se colocarmos o assunto na pauta principal das discussões. É preciso também uma fatia maior de investimentos, além da gestão dos recursos hídricos, que tem andado, mais ainda de maneira muita lenta. “É necessário este período de organização da sociedade, e estamos caminhando”, disse Canedo, que concluiu com um exemplo positivo. A região da Grande Vitória, no Espírito Santo, tem feito investimentos vultosos em abastecimento e saneamento básico e em cinco anos deve chegar aos 100% de abastecimento de água e aos 90% da rede de esgoto tratada com saneamento básico, uma universalizaçao real. “A água é escassa, mas o bem mais escasso é o dinheiro”, finalizou o engenheiro.