As Quebradas e a Academia: encontros culturais na Universidade
Por Pedro Eler
Toda quinta-feira, um grupo de artistas e produtores de cultura de diversas periferias da cidade do Rio de Janeiro se reúne no Fórum de Ciência e Cultura da UFRJ para discutirem, com professores renomados de diversas faculdades cariocas, temas como filosofia, história da arte, psicanálise, antropologia e literatura. Trata-se da Universidade das Quebradas, um curso de extensão do PACC – Programa Avançado de Cultura Contemporânea / UFRJ que tem como objetivo aproximar esses dois mundos e transformar a universidade num espaço de construção de conhecimento efetivo a partir da interação e da parceria da cultura produzida nas comunidades com o universo acadêmico.
Numa Ciro foi uma das idealizadoras do projeto, que, como ela explica na entrevista a seguir, nasceu de sua tese na Faculdade de Letras da UFRJ. A orientadora da tese foi Heloisa Buarque de Hollanda, e conforme o trabalho se desenvolveu, elas perceberam a vontade que muitos artistas de periferia tinham de estudar e conhecer o universo cultural acadêmico do qual eles são muitas vezes excluídos por diversas razões. Da percepção dessa necessidade nasceu o projeto Universidade das Quebradas, como Ciro explica nessa entrevista que ela concedeu ao blog d’o Instituto.
Pedro Eler: Primeiramente, qual a origem do projeto? Porque vocês (Heloisa Buarque de Hollanda e Numa Ciro) pensaram nessa necessidade de uma universidade voltada para artistas de periferia?
Numa Ciro: Heloisa orientou a tese que defendi na Faculdade de Letras, UFRJ, Nas Quebradas da Voz: o lugar e a mãe na crônica poética do rap. Durante o processo de desenvolvimento da pesquisa de campo requerida pela metodologia da tese, verificamos que os rappers que entrevistamos estavam ávidos para estudar e ler. E, principalmente, dentro da proposta desta metodologia, a tese não deveria servir de porta-voz dos artistas, mas se constituir como um espaço de troca, onde uma teoria só seria concretizada através da parceria entre nós, a orientadora, a orientanda, a bibliografia que adotamos e os artistas com os quais estávamos trabalhando, tanto os sujeitos em pessoa, como através dos seus textos: rap, reflexões, crônicas, a poesia e a literatura periféricas ou marginais.
Se a minha pesquisa foi ao encontro de Heloisa em suas viagens pelos universos culturais, aquelas perspectivas da tese se renovam neste processo construtivo, do qual o curso Universidade das Quebradas é uma das iniciativas. Entre os pontos que retomo agora, quando estou escrevendo um projeto para a realização de um pós-doutoramento, aqui no PACC, dois deles são importantes para você entender o que nos levou à Universidade da Quebradas. Em primeiro lugar, repito: a vontade dos artistas de estudar, ler e conhecer o universo cultural do qual estão excluídos por uma série de razões que seria exaustivo discorrer sobre elas neste espaço. Em segundo lugar, nossa idéia minha e de Heloisa e, depois, de todos que abraçaram essa causa, de levar às últimas consequências a construção de um conhecimento obtido pela parceria entre nós, da academia, e os artistas e produtores culturais das periferias.
PE: O projeto da Universidade das Quebradas se estende a diversas cidades ou é para artistas cariocas?
NC: Se estava no edital que o curso era oferecido aos cariocas não significava um veto aos artistas e produtores culturais de outras localidades. Foi porque não tínhamos “ainda” nenhuma verba para bancarmos passagens e hospedagens para as pessoas de fora. E nós sabemos como é difícil para esses artistas e produtores se deslocarem e se manterem fora de seus locais de moradia e trabalho. Estamos tentando encontrar um jeito de oferecer bolsas aos participantes daqui, referentes a passagens, alimentação, compra de livros e outros materiais didáticos imprescindíveis para o melhor aproveitamento do curso com toda a sofisticação à qual ele se propõe.
PE: De onde surgiu o nome Universidade das Quebradas?
NC: “Quebradas” é outro nome para favelas, assim chamadas nas periferias de São Paulo. Essa denominação ganhou um significado especial por ter se popularizado em todo o país, no universo do hip hop, através das letras de rap. Adoramos esse nome e, a partir de então, nós o adotamos para identificar nossas atividades e estudos culturais em conexões com as periferias.
PE: Percebe-se nas universidades, pelo menos na UFRJ, uma certa alienação em relação à cidade, e principalmente, à periferia. O curso Universidade das Quebradas tem como objetivo também aproximar esses dois mundos que muitas vezes parecem ser tão distantes?
NC: Não parecem, são distantes. A universidade pública no Brasil, hoje, ainda é um centro de ensino e pesquisa elitista, embora as primeiras mudanças já estejam sendo vislumbradas. O sistema de cotas mira exatamente esta problemática, levando em consideração as questões étnicas envolvidas. O curso de extensão Universidade das Quebradas visa exatamente contribuir para o alargamento das possibilidades de troca entre esses dois mundos.
PE: Na própria UFRJ, o ensino parece ser tomado por alunos de classe média e alta. Porque, na opinião de vocês, a universidade pública é tão elitisada? De que forma a Universidade das Quebradas pode ajudar a mudar isso?
NC: Não é fácil discorrer sobre este problema em poucas linhas, porque teríamos que nos reportar, por exemplo, à forma como até hoje são tratados os trabalhadores, principalmente os descendentes daqueles que foram anteriormente escravos. Ninguém ignora o destino que foi dado aos libertos, quando foi decretada a abolição da escravatura no Brasil. A situação é bastante violenta: a moradia, os meios de transporte, os sistemas de saúde e de educação, para ficarmos no básico, na simples sobrevivência.
Diante de nosso espaço/tempo exíguo, quero transcrever uns versos do poeta Ridson Mariano da Paixão, que sofre na pele, no coração e nos pensamentos o descaso do qual falei acima. Ele mora no Jaqueline, uma favela de São Paulo, e pertence a um movimento de cordel urbano, a família Extremamente (família ou posse é o nome de uma forma como as pessoas ligadas ao hip hop re-significaram noções como território e parentesco a partir de seus pertencimentos a grupos envolvidos com políticas culturais e artes nas periferias). Ridson escreveu, na poesia “Plano Senzala” (na revista “Caros Amigos”, edição especial, “A cultura da periferia – Ato III”, abril de 2004):
Barraco é cela, cadeia é favela
Viela é corredor, quarteirão é pavilhão e vice-versa
Que hora é essa? Interminável era
Mais de cinco séculos de plano senzala se completam
Dentro do nosso plano de fazer parceria, eu trago as vozes dos artistas e escritores das periferias, para falar comigo dessas condições e pensarmos juntos sobre o seguinte: alguém vivendo assim pode se preparar para passar através do funil / coador do vestibular? Quantas vezes já me retrucaram dando exemplos esporádicos e singularíssimos sobre os gênios que conseguiram atravessar o gargalo. Não interessam, para essa reflexão exemplos geniais. O que importa é quebrar gargalos, derrubar cercas, ferir limites de forma coletiva. Em vez de apelar para a sorte, descobrir os meandros da lógica que pões em funcionamento essa “máquina moedora de gente” como dizia, esse gênio sim, interessa, Darci Ribeiro.
A psicanálise me faz supor que este gênero de privação que a maioria da população trabalhadora do nosso país sofre é terreno para cultivo do ódio. Como todo sentimento, o ódio quando é estimulado incessantemente, provoca as mais variadas formas de expressão. Diante de tamanho desconforto diário, cada pessoa, ou grupo de pessoas que partilham vivências comuns, reage ou age, de onde sofre a ação, a partir da sua própria perspectiva, de conformidade com a resistência adquirida por munições afetivas e cognitivas. O verbo sempre deixa pistas. A poesia citada acima de Ridson nos mostra um dos lados do problema.
Darei outro exemplo: a voz do Coletivo Cultural Poesia na Brasa faz a crítica dessa condição que permite que uma instituição denominada de Universidade tenha se dado tão pouco a essa experiência com o universal. Veja, a ideia desse coletivo é a de que o que eles fazem ou deixam de fazer não tem a menor importância para a elite do país. Seus participantes perguntam, em uníssono: “qual a importância dos livros que escrevemos – para os acadêmicos que, em seus delírios, imaginam “muletas” a fim de sustentar teorias capengas, feridas pelas lacunas de suas idéias? O que eles diriam? Talvez que sejam irrelevantes, pois não podem ser sepultados nas empoeiradas estantes de bibliotecas de universidades, imitando o destino de suas teses rigorosamente elaboradas e herméticas”.
O curso Universidade da Quebradas pretende, ferindo limites, quebrar este ódio, criar uma ponte sobre esse fosso, desafogar o trânsito entre pessoas de diferentes inserções sociais, econômicas se culturais. Os artistas das periferias já nos ensinaram muito, por exemplo, falando um português do Brasil maravilhoso, rico, com sintaxes inesperadas, concordâncias que discordam da norma culta, mas onde se mostram as razão e as emoções de uma língua viva onde a matéria prima é a própria experiência. Quando nas quebradas se diz: “Nós é”, não vê, quem não quer ver um singular plural perfeitim: o eu separado de mim mostrando que a convenção linguística pode ser outra, podem haver outras formas de pluralizar e de se fazer singular. Isso é a Universidade das Quebradas. Nós é. Interpelado, por terescrito “Nós vai”, Sérgio Vaz, escritor da periferia Capão Redondo, zona sul de são Paulo, disse: “Está certo. Quando nós diz que nós vai, nós vai mesmo”.
PE: De que forma a Universidade das Quebradas tem ajudado no desenvolvimento dos projetos culturais e artísticos de seus alunos?
NC: Os participantes não nos pediram ajuda. Nós os convidamos para trocar. Nós estamos interessadas no que eles sabem, vivem, conhecem, falam. Nós pensamos que temos algo a dar e eles quiseram saber o que tínhamos para oferecer. Eu sei que se alguém está sendo ajudada, esse alguém sou eu. Mas acredito que Heloisa também diria o mesmo, da forma dela. Não sabemos de muita coisa, ainda é muito cedo. E não pensamos também nesses termos de ajuda. Ajuda é uma palavra que tentamos não por em ação em condições como esta. Ela sempre aparece de mãos dadas com palavras irmãs como assistência, capacitação, caridade, pena, piedade, etc. O nosso olhar sobre os participantes é de admiração, nós queremos fazer parcerias com eles e nem sabemos como isso vai se desenvolver. Não sabemos mesmo. Se soubéssemos, não seria parceria.
PE: Vocês acreditam que a Universidade das Quebradas apresenta uma possibilidade de exposição e desenvolvimento artístico para seus participantes?
NC: Não estamos desenvolvendo aquela idéia tradicional de ensino. A principal idéia é troca, parceria. Nós queremos trocar o acervo de conhecimentos que a universidade tem acumulado, com os conhecimentos que estes artistas e produtores culturais estão criando, desenvolvendo, descobrindo nas suas comunidades. Por esse víeis, aqui eles tem um espaço de convivência para expor seus trabalhos e projetos.
PE: Há quanto tempo o projeto existe?
NC: O projeto existe desde o ano passado, 2009. Começou extra-oficialmente e a repercussão foi tão positiva que Heloisa mais que depressa, rápida como ela só, oficializou. Neste ano, em março, começamos pra valer, e no final tem diploma e tudo. Um luxo.
PE: Este ano, quantos alunos estão matriculados?
NC: 28 alunos. Sem falar nos visitantes de várias naturezas, várias culturas, diferentes e parecidos. Um novo coletivo é formado em cada encontro.
PE: Sendo que alguns, senão vários, destes alunos trabalham, como o projeto concilia sua organização para acomodar a necessidade destes alunos?
NC: O que fizemos foi escolher um dia da semana, quinta-feira, com aulas quinzenais. Na prática nós temos nos encontrado todas as quintas-feiras. O que aconteceu foi que durante as entrevistas para escolhermos os alunos entre os inscritos, pedimos para que eles se esforcem no sentido de deixar todas as quintas-feiras disponíveis, porque temos muitas idéias para realizarmos, como idas às bibliotecas da cidade, aos teatros, galerias e museus de arte; fazermos grupos de leitura, oficinas de contos, como o que já está acontecendo com a orientação do professor João Paulo Vaz. E assim por diante. A maioria está conseguindo vir. Incrível. A UQ nos pegou a todos pela razão e pelo coração.
PE: O curso da Universidade das Quebradas se diferencia de uma educação formal?
NC: Não se diferencia não. É uma variável da educação formal. Está sendo oferecido pela universidade. O formato, a proposta, a parceria é que são novidades. É um curso de extensão (um dos pilares da educação universitária, em conjunto com o ensino e a pesquisa) e que tem uma proposta bem sofisticada de adentrarmos os saberes universais, como a filosofia, a mitologia, a psicanálise, a história da arte, a antropologia, a literatura.
PE: Esse ano, quais os professores que vão lecionar no curso?
NC: Já fizeram suas apresentações: Charles Feitosa, Silvério Ortiz, Beá Meira, Beatriz Resende. A partir desta semana, virão Claudia Matos e, depois, Valdemar Valente falar sobre o romantismo; Guilherme Carvalho, maestro da Orquestra de Cordas do Afro Reggae vai falar sobre a música clássica, período romântico. Ítalo Moriconi sobre a Semana de Arte Moderna, e mais: Bráulio Tavares, Heloisa B. Hollanda, Ilana Strozenberg, Eduardo Jardim, Elisa Larkin Abdias, Silvia Sotter, Cristiane Costa. A artista plástica e arquiteta Beá Meira está acompanhando todas as apresentações e costurando-as com a história da arte. Assim como eu fiz uma palestra introdutória sobre a psicanálise e, aos poucos irei articulando-a com as matérias dadas, ao longo do curso. Ainda temos mais algumas pérolas na concha que serão conhecidas e oferecidas aos poucos.
Para saber mais sobre o projeto da Universidade das Quebradas acesse o site www.universidadedasquebradas.blogspot.com