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Busca por direitos da população LGBTQIAPN+ tem apoio de organização na Baixada Fluminense

jun
2024

Por Johari Silva.

“(…) A luta de um corpo estereotipado, possuído de fetiche pelas esquinas, mas não possuidor de direitos (…)”

Este verso faz parte da poesia “Orgulho e Luto”, de Davlyn Lótus, que resume muito bem as mazelas de ser um LGBT+ no Brasil. A população LGBTQIAPN+ brasileira sempre foi vitimada por numerosas formas de violência, contudo, a pandemia do Covid-19 evidenciou problemas sociais como a fome, a LGBTfobia e a violência de gênero. 

Conforme o relatório “Denúncia de Violações dos Direitos à Vida e à Saúde no contexto da pandemia da covid-19 no Brasil”, assinado pelo Conselho Nacional de Saúde (CNS) e o Conselho Nacional de Direitos Humanos (CNDH), as pessoas LGBTQIAPN+* sofreram mais violências durante a pandemia do Covid-19. De acordo com relatos da Rede Brasileira de Casas de Acolhimento LGBTQIA+ (REBRACA LGBTQIA+), durante o período pandêmico as casas de acolhimento LGBT+ em todo o Brasil registraram altos índices de demanda. Novas iniciativas de promoção aos Direitos Humanos LGBTQIA+ e casas de acolhimento surgiram a fim de frear o crescimento do número de pessoas LGBT+ em situação de rua e/ou vulnerabilidade social. No Rio de Janeiro, a Casa Resistências e a Casa Dulce Seixas são exemplos de iniciativas que surgem durante a pandemia do Covid-19 ao perceberem que o poder público estava negligenciando a saúde e a seguridade desta população.

Atualmente, mesmo após a pandemia do Covid-19, a realidade enfrentada por pessoas LGBTQIAPN+ no Brasil não teve grandes mudanças. Pelo 15º ano consecutivo o Brasil é o país que mais mata pessoas trans no mundo, ao mesmo tempo que se encontra no topo do ranking dos países que mais consomem pornografia trans.

O atual governo tem como foco o combate à fome e o respeito à democracia, no entanto o principal instrumento de acesso aos programas sociais é LGBTfóbico, e deixa milhões de pessoas LGBTQIA+ vulneráveis. O Cadastro Único para Programas Sociais do Governo Federal (Cadastro Único) é crucial para a seleção e a inclusão de famílias de baixa renda em programas federais, não é acolhedor para pessoas LGBTQIAPN+. Hoje, a ausência dos campos ‘nome social’, ‘orientação sexual’ e ‘identidade de gênero’ contribui para a invisibilização dessas pessoas e dificulta o acesso dos LGBTQIAPN+ as políticas públicas necessárias para romper com o  ciclo de violências que assolam essa população. A remoção das famílias unipessoais do Programa Bolsa Família não considerou a identidade de gênero das pessoas responsáveis pelo Cadastro Único, que não possui em seu banco de dados essa informação, arremessando milhares de pessoas trans e travestis na vulnerabilidade socioeconômica.

De acordo com dados do 2º Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da Covid-19 no Brasil, elaborado pela Rede PENSSAN, entre 2021 e 2022, mais de 125 milhões de brasileiros estavam em algum dos níveis de insegurança alimentar. Desse número alarmante, estima-se que mais de 33,1 milhões de pessoas se encontravam em insegurança alimentar grave, ou seja, sofrendo a violência da fome. Simultaneamente ao aumento da fome no país, a violência doméstica e de gênero também cresceram vertiginosamente no mundo inteiro. Para assumirmos uma noção mais alargada, apesar de as pesquisas realizadas nesse período não levarem em consideração a população LGBTQIA+, diante da pandemia do Covid-19 houve um aumento das pessoas trans em situação de rua e prostituição, um crescimento nos casos de violência doméstica com cunho LGBTfóbico, assim como de pessoas LGBTQIAPN+ em insegurança alimentar.

 

Casas de acolhimento: um porto seguro

 

Shirley de Maria Padilha, presidente da Casa Dulce, e os acolhides posam para a fotografia. Foto: Bárbara Dias

 

As casas de acolhimento LGBT+ durante anos têm sido fundamentais no amparo de pessoas LGBTQIAPN+, garantindo o acesso a serviços e equipamentos públicos, apoiando na conclusão dos estudos e na inclusão ao mercado de trabalho, dessa forma, auxiliando pessoas que passaram por situações de violência e/ou vulnerabilidade a se reerguer. Situada no município de Nova Iguaçu, há três anos, a Casa Dulce Seixas persevera como a primeira e única casa de acolhimento para pessoas LGBTQIAPN+ em situação de rua e/ou vulnerabilidade socioeconômica na Baixada Fluminense. Desde que abriu suas portas, a Casa Dulce Seixas já acolheu mais de 150 pessoas de todo o país, LGBTs vindos de vários estados, como: Amazonas, Bahia, Pará, Paraná, São Paulo, Tocantins e Rio de Janeiro. 

O projeto de acolhimento é oriundo do terreiro de candomblé Ilê Omim Dewa Asé Odé, que há 14 anos já acolhia pessoas em vulnerabilidade com o apoio de Dulce Seixas Cordeiro, uma das filhas de santo mais devotas da Iyalorixá Shirley de Maria Padilha. Hoje, atua como uma casa de acolhimento, por tempo indeterminado, para pessoas LGBTQIAPN+ e mulheres heterocisnormativas vítimas de violência ou em situação de vulnerabilidade.

A Casa Dulce Seixas atua no combate à insegurança alimentar fornecendo 800 refeições semanais para os assistidos pela instituição, além disso, põe em prática o conceito mais básico da assistência social, através do projeto Dulce’mente Solidária que encaminha famílias aos programas sociais e já distribuiu mais de 500 cestas básicas, em nove edições, que começaram em 2020, sendo a última edição em março de 2024. Estas cestas foram doadas a partir da rede de parceiros e não são fixas, portanto, exigem uma nova busca todos os meses.

O trabalho da Casa Dulce se divide em 5 eixos: Acolhida, Advocacy, Assistência Social, Capacitação para o Trabalho e Cultura. A ONG arca com todos os custos através da contribuição de pessoas físicas, as despesas mensais chegam a R$10.000, elas vão desde a conta de luz, que, no mais barato, custa R$1350, a conta de água, de internet e os gastos no mercado para o complemento nutricional da alimentação ofertada (carnes, verduras, legumes e frutas). Além disso, a Casa Dulce custeia o material de limpeza e produtos de higiene pessoal, as despesas de transporte, medicações e o IPTU da propriedade, que é cobrado pela prefeitura.

“Todos os dias, há famílias que necessitam de apoio emergencial solicitando a ajuda da Casa Dulce Seixas. Muitos procuram a ONG com traumas causados pela violência física e psicológica, chegando na casa somente com as roupas do corpo”, relata Shirley Maria presidente da ONG. Contudo, têm se tornado comuns histórias de superação entre os acolhides da instituição – desde acessar a universidade a comprar uma casa própria. 

Davlyn Lótus, Shirley Maria Padilha e Johari Silva, a diretoria executiva da Casa Dulce. Foto: Bárbara Dias

 

A instituição pretende construir uma cozinha comunitária para expandir sua capacidade de produção de refeições prontas e, simultaneamente, ofertar cursos, oficinas e workshops dentro da área gastronômica colocando em prática o projeto Dulce’mente Capacitadora, que tem como objetivo a capacitação para o trabalho ou empreendimento dos seus assistides. Essas iniciativas visam promover a autonomia financeira dos envolvidos, no entanto, devido às dificuldades para a compra de equipamentos e de problemas estruturais, o projeto está temporariamente suspenso. A Casa Dulce está dando prioridade à captação de recursos para a execução desse projeto, entendendo sua importância para o território.

A ONG também está planejando a realização do projeto Dulce’mente Literária e Cultural, que culminaria na construção de uma biblioteca comunitária, com o empréstimo de livros, entendendo que a literatura é um direito humano e fundamental para o pensamento livre em uma sociedade democrática. Assim sendo, a sede também servirá como ponto de encontro, para a comunidade do entorno da Casa Dulce e para os movimentos sociais do território. Além disso, o programa também tem o intuito de realizar eventos culturais, como slams e saraus de poesia.

Na Casa Dulce Seixas, se reconhece a importância da história de cada pessoa que passa por esse espaço de acolhimento e cuidado. Toda vitória é mérito delus, delis, delas e deles, com uma pitada do abraço e do colo da instituição. Para todes da Casa Dulce, o sentimento é de gratidão, cada indivíduo é recebido com muito carinho, ganha um lar e passa a fazer parte da família Dulce Seixas.

 


*LGBTQIAPN+: Sigla guarda-chuva que abarca orientações sexuais e identidades de gênero que fogem da cisheteronormatividade, representando: Lésbicas, Gays, Bissexuais, Transsexuais, Queer, Interssexuais, Assexuais, Panssexuais, Não-bináries e mais…


 

Foto da capa: As mulheres trans acolhidas, na 1ª Ação Social realizada pela ONG na pandemia. Crédito: Johari Silva

Johari Silva é ativista, comunicadora e produtora cultural, nascida e criada em Nova Iguaçu, atuante na luta pelos Direitos Humanos da população LGBTQIAPN+ desde seus 13 anos. Participou de debates e reuniões que resultaram na implementação de políticas públicas, como os “Centros de Cidadania LGBTI” na região da Baixada Fluminense. Em 2021, fundou a primeira e única casa de acolhimento LGBT+ na Baixada, a Casa Dulce Seixas, na qual é vice-presidente. Johari exerce o cargo de Assistente de Redes e Campanhas da Ação da Cidadania, também é Membro-diretor do Grupo ELLOS que realiza anualmente a Parada do Orgulho LGBTQIA+ de Nova Iguaçu. Atualmente, ocupa assento no Conselho Estadual de Segurança Alimentar e Nutricional e no Conselho Estadual dos Direitos da População LGBTQIAPN+ no Rio de Janeiro, ainda participa dos Conselhos Municipais de Saúde, de Defesa do Direito do Negro, de Alimentação Escolar e de Segurança Alimentar e Nutricional em Nova Iguaçu.