Favelas e periferias: justiça climática é lutar por sobrevivência hoje
Por Kita Pedroza.
Já ouviu falar em justiça climática, certo? É possível. Na primeira matéria da série Justiça climática: pontos de vista, abordamos esta ideia, cada vez mais difundida, que vai muito além da concepção sobre meio ambiente predominante durante longo tempo, centrada principalmente em preocupações com estimavas de emissões de gases de efeito estufa e suas consequências frequentemente difundidas como proporcionais para o todo o planeta. O agravamento da crise climática é real, de acordo com dados amplamente divulgados pela comunidade científica. Mas é preciso reconhecer que os seus impactos atingem lugares e populações de forma desigual, penalizando, sobretudo, contextos de maiores desigualdades sociais.
Na região metropolitana do Rio de Janeiro, o conceito ganha concretude, de forma evidente, em bairros, favelas e áreas consideradas periféricas, alcançando espaços geográficos e corpos que habitam lugares historicamente marcados pela insuficiência de investimentos em infraestrutura urbana e políticas públicas que garantam moradia digna, além de acesso a direitos fundamentais. Ou seja, olhar para questões ambientais, hoje, implica também em reconhecer impactos diferenciados em relação a raça, classe e gênero. E mais: em reconhecer a importância dos pontos de vista de quem tem seus direitos cerceados. Nesse sentido, a partir desses grupos e lugares tem surgido novos engajamentos por Justiça Climática e iniciativas de coleta de dados, como o relatório ‘Justiça Hídrica e Energética nas Favelas’, que mapeou, em 2022, a pobreza energética em cinco municípios do RJ.
De acordo com a Mary Robinson Foundation, plataforma internacional especializada em Justiça Climática, “A Justiça Climática vincula direitos humanos e desenvolvimento para alcançar uma abordagem centrada no humano, na salvaguarda dos direitos das pessoas mais vulneráveis e na partilha dos encargos da mudança do clima e de seus impactos de forma equitativa e justa”.
A pandemia da Covid-19 colocou holofotes sobre a vulnerabilidade maior de populações expostas a condições precárias de moradia. Diversas organizações de base comunitária se uniram em várias frentes para garantir a própria sobrevivência – no Rio: Painel Unificador Covid-19 nas Favelas, Frente de Mobilização da Maré, Frente CDD Contra a Covid-19, União Coletiva da Zona Oeste, SOS Providência, CoronaZAP, Corona nas Periferias, Opina Rocinha, Rocinha Resiste, LabJaca entre muitas outras. Essas experiências e redes formadas fortaleceram novas iniciativas locais de pesquisa e sistematização de conhecimentos que começam a coletar dados referentes a seus próprios territórios. Objetivos? Apresentar debates e propostas adequadas às suas realidades alinhadas com os eixos de Justiça Socioambiental e Climática, além de outros direcionados à implementação dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) da ONU e da Agenda 2030. Mas, sobretudo, levam em conta saberes, linguagens e demandas locais no enfrentamento a problemas históricos que perduram, como o acesso limitado a saneamento básico, água e energia elétrica, agravados com a crise climática atual.
“Justiça Climática, na prática, significa, por exemplo, chuva forte e sérios transtornos pra milhares de pessoas que já convivem com enchentes no Rio de Janeiro. Ou seja, têm efeitos imediatos”, lembra Henrique Silveira, coordenador geral da Casa Fluminense. Com longa trajetória de construção de propostas de políticas públicas definidas a partir das prioridades dos territórios, a Casa elaborou a Agenda Rio 2030, junto com grupos de diversas localidades da região metropolitana do Rio de Janeiro, com propostas por Justiça Econômica, Racial, de Gênero e Climática.
“Os alagamentos tiram o nosso direito de ir e vir. Tiram o direito de as crianças irem pra escola, da gente sair pra trabalhar, cancelam compromissos das pessoas, impedem pessoas idosas de sair, ir a médicos”. Ivone Rocha, moradora de Rio das Pedras, na zona oeste do RJ
Ivone Rocha foi uma das pesquisadoras do estudo ‘Justiça Hídrica e Energética nas Favelas: Levantando Dados Evidenciando a Desigualdade e Convocando para Ação’, realizado por 45 jovens e lideranças de 15 comunidades do Rio de Janeiro. A iniciativa foi da Rede Favela Sustentável e do Painel Unificador das Favelas, com colaboração de oito instituições, que ofereceram o curso “Pesquisando e Monitorando a Justiça Hídrica e Energética nas Favelas” para este grupo de moradores. Ao todo, foram realizadas entrevistas com 4164 pessoas, entre maio e junho de 2022, produzindo resultados sobre acesso, qualidade e eficiência relativas à água e luz em comunidades de cinco municípios do Grande Rio. Moradora de Rio das Pedras, Ivone vive a mesma realidade que pesquisa, o que é fundamental para o estudo se aproximar, o máximo possível, da complexidade da realidade retratada e colaborar para propor soluções que, de fato, melhorem a qualidade de vida local.
“A falta de dados nas favelas reflete na ausência de políticas públicas estruturantes e sobre a importância de produzir dados sobre a realidade da favela através de como ela é percebida pelos próprios moradores.”
O alerta é de Alan Brum, cofundador do Instituto Raízes em Movimento (do Complexo do Alemão) e um dos orientadores do curso Pesquisando e Monitorando a Justiça Hídrica e Energética nas Favelas.
Sobre o o acesso à água, a pesquisa registrou que 42,5% dos entrevistados tiveram dificuldades para fazer a higiene básica durante a pandemia devido à falta de água. Além disso, quase metade (48,2%) dos entrevistados dependem de bombas para ter acesso à água, gerando um custo adicional nas contas de luz. Outra questão destacada foram os alagamentos, que afetam a vida de mais da metade (51,5%) dos entrevistados. E mais de 80% deles afirmam que as enchentes pioraram nos últimos dois anos. Quanto à energia elétrica, avaliando-se o peso no orçamento familiar, 56,8% dos entrevistados relataram viver em situação de pobreza energética (quando a conta de luz ultrapassa 10% da renda familiar). Junto a isso, quase 70% dos entrevistados relataram que comprariam mais alimentos caso suas contas de luz fossem reduzidas.
Andréia Coutinho Louback, jornalista e uma das 20 porta-vozes de Justiça Climática no Brasil, resume: “Falar de Justiça Climática, então, nos provoca – e convoca – à impossibilidade de discutir uma perspectiva sobre futuro sem a participação periférica, dos homens e mulheres negras, da população quilombola, das comunidades tradicionais e de outros grupos marginalizados e ditos como apenas ‘vulneráveis’.”
Foto/capa: Casas soterradas na favela da Rocinha, em decorrência da enchente de fevereiro de 2019. Centenas de famílias atingidas perderam moradias e bens, recorrendo ao aluguel social. Crédito: Kita Pedroza
Com informações de:
Rio on watch | rionwatch.org.br
Instituto ClimaInfo | climainfo.org.br
Mary Robinson Foundation | www.mrfcj.org
Casa Fluminense | casafluminense.org.br