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Futuro das Águas: Imaginário das águas | Mesa 3

abr
2009

Por Bruno Dorigatti

A terceira e última mesa do Seminário Futuro das Águas voltou-se para a questão do imaginário, ao tratar da água como objeto de reflexão e elemento de linguagem em diferentes manifestações do saber, como na religião, nas artes e na ciência.

Heloisa Buarque de Hollanda, diretora d’ O Instituto, abriu a mesa comentando a intenção de unir cultura e ciência. “Até muito pouco tempo, a cultura não entrava como uma variável de análise importante. Hoje a gente já tem várias outras perspectivas de cultura como recurso econômico, como recurso político, enfim, a cultura já tem outras entradas e a gente está testando aqui, agora, como metodologia científica.” Segundo ela, assim como a água integra um ecossistema que afeta tudo, “a cultura está sendo cada vez mais vista também como um ecossistema cultural, começa com uma discussão entre diversidade cultural, que é exatamente a biodiversidade. Essa visão sistêmica é que trouxe a idéia dessa mesa”.

Paulo Herkenhoff, diretor do Museu de Belas Artes do Rio de Janeiro, apresentou quadros onde a questão da água aparece de diferentes maneiras, com significados os mais variados. Em uma tela de John Jonas, de 1508, por exemplo, há uma cena que une campo e cidade, onde temos um homem e uma mulher com seu filho ao lado, no alto um raio, e não se vê bem, mas há um pequeno córrego que corre. “Trata‑se de uma circulação da água, essa cena primal é extremamente vinculada ao tempo e simultaneamente encerra alguns símbolos. O primeiro deles, evidentemente, é idéia de nascimento com esta criança amamentada e essa luz que cai, existe um pé no Lucrécio, de natura que diz que nascer é dar as praias da luz, ao mesmo tempo a chuva que se promete e uma mãe provedora, falando então da continuidade da natureza e, finalmente, é preciso dizer que essa é a primeira paisagem produzida pela arte ocidental como moderna, no sentido de não estar vinculada à tradição anterior do gótico”, acrescentou Herkenhoff.

E para onde vai esta água que corre? “O que não se avista é o destino do rio, que é o mar. George Bataille, numa resposta a Satre, sobre a idéia do não saber, dizia que a vida está destinada a se perder na morte, como um rio se perde no mar. O conhecido e o desconhecido. Ou seja, este não-saber é aquilo que nos desestabiliza, e a água é sempre um elemento de desestabilização, nós sabemos.”

A seguir, Herkenhoff tratou de cinco obras, quatro do século XIX e uma do século XX. A primeira é A carioca, de Pedro Américo (ao lado), uma tentativa de definir um tipo da cidade do Rio de Janeiro. “No lado simbólico existe estes planejamentos brancos e vermelhos com seus símbolos históricos, o branco com símbolo de pureza. E a simbólica da água é feminina, isso que se diz no século XIX”, acrescenta. A carioca remete ao estado de um jardim com água corrente, o frescor da carioca, no sentido de estabelecer uma primeira representação do que é ser uma mulher no Rio de Janeiro, um simbolismo típico do século XIX. A próxima imagem é Moema, heroína do poema Caramuru, do Frei de Santa Rita Durão, precursor do indianismo do Brasil e aqui pintada por Vítor Meirelles (abaixo). Moema, ao ver que seu amado saía de navio e ia embora, se lança ao mar, nada e se agarra ao leme, mas depois nada até à exaustão e simplesmente se entrega à morte. Herkenhoff citou Bachelard: “Um dos aspectos do interminável devaneio da morte, é a morte sobre a água”. “Em seguida, Bachelard pergunta: ‘Terá sido a morte o primeiro navegador?’. Para o indigenismo brasileiro terá sido, sim, o primeiro navegador”, completou Herkenhoff, que considera o pensador francês uma referência importante. “Água e sonhos é um livro extraordinário, é parte da psicanálise dos quatro elementos, ele estuda profundamente a simbologia da água com enorme poder de articulação, de referência, e falando talvez de um exercício e de uma vontade material e propriamente de uma imaginação imaterial através da água.”

 

 

 

O terceiro exemplo é O derrubador brasileiro, de Almeida Júnior (ao lado), que não é um bandeirante, que não foi a única figura máscula, heróica da história brasileira, como se coloca hoje num certo discurso hegemônico. Para Herkenhoff, a água é muito parca ao lado desse brasileiro. A seguir, O último tamoio, de Rodolfo Amoedo (abaixo). “Esta pintura também aponta para diversas questões e problemas do indigenismo, mas também se referindo à maneira que a Europa busca entender essa alteridade a partir do Iluminismo. Ou seja, existe aí algo do bom selvagem de Jean Jacques Rousseau, entre o encontro no que poderia ser entendido como a civilização européia, a fé redentora do catolicismo com esse selvagem.” Os tamoios foram massacrados em 1575, em Cabo Frio. É uma pintura feita de 1883, antes da Abolição e da República, e que remete a um símbolo de resistência pela liberdade. E o que seria a água nesse contexto? “É a origem da destruição, ou seja, é desse mar que chega a destruição das sociedades indígenas. Se articulada a Moema, ali está uma partida dolorosa, aqui está uma chegada sangrenta, este é o resultado final.”

Por fim, Tarsila do Amaral. Acrescenta Herkenhoff: “Em 1923, ela está em Paris, e escreve para a mãe dizendo que Paris agora quer saber de gravuras japonesas, de arte africana e que ela vai trabalhar com temas brasileiros. Ela faz um quadro de tema brasileiro, que é A negra (abaixo), mas uma negra não cristianizada – porque toda pintura que ela fará depois dessa, será de negros cristianizados, adoração, anjos. Ou seja, Tarsila não faz o exercício de estudar a obra de outras sociedades, como faziam Picasso, Chico Monteiro, ela absorve referências de outros artistas”. A cabeça do Abaporu, por exemplo, é saída da escultura Princesa X, de Brancusi, uma obra de Papua. “Em Tarsila não existe água na origem, ou seja, não há um fluxo que defina essa origem. Vejo aí esse ponto complicado na obra dela, talvez justamente pela ausência de água de fluxo”, concluiu. 

Para Herkenhoff, a pintura desses cinco artistas confirma certa cartografia identitária que se tentava armar no Brasil. “Havia uma água que de certa forma era apresentada como uma fonte de vida, uma fonte de origem, mas ao mesmo tempo buscava uma dimensão da identidade que se tornaria mapa estável e calmo, como a água, o mito. Mas ao mesmo tempo se oporia a turbulência do real.”

A seguir, Henrique Lins de Barros, doutor em física pelo Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas (CBPF), onde é professor titular, e curador da exposição H2O – O Futuro das Águas, começou falando das origens. A água aparece na cultura ocidental como um dos elementos fundamentais na natureza: água, fogo, terra e ar. “Esta visão é primária, inicial, e vai definir toda uma percepção da cosmologia, toda uma visão de mundo, que vai ser gradualmente perdida a partir do século XVIII, quando se consegue fazer a decomposição da água.” Barros se refere aos experimentos feitos por Priestley, Lavoisier, e Duporter, quando se consegue separar da água dois elementos: o hidrogênio e oxigênio, sendo que o hidrogênio é um elemento facilmente combustível. “Então existe um problema na teoria dos quatro elementos fundamentais, que é o fato de que você pode tirar da água o hidrogênio, o fogo, e a água então deixa de aparecer como elemento fundamental.” A partir daí, gradualmente, caracterizamos a água como uma molécula composta por três átomos: dois átomos de hidrogênio e um de oxigênio, que formam um triângulo aberto em que dois vértices são de hidrogênio e um de oxigênio. São moléculas polares – mais carga negativa de um lado do que de outro – e isso vão dar várias características de propriedades. “Nunca vimos uma molécula d’água, elas são muito pequenininhas. Um átomo de hidrogênio tem mais ou menos como 0,00000000001 de comprimento, ou seja, um tamanho muito inferior a nossa capacidade de ver. Nunca vimos uma molécula d’água e provavelmente nunca veremos dentro do corpo de conhecimento que nós temos hoje. Mas podemos idealizá‑la.”

Além disso, a água talvez seja a única substância que tenha uma característica muito peculiar: quando você esfria a água, a partir de 4o C, ao invés de continuar encolhendo, como quase todas as substâncias fazem, ela se dilata e isso faz com que o gelo ocupe mais volume do que a água que o compõe. “O fato do gelo boiar é extremamente importante. Quando a temperatura baixa e os lagos, os mares gelam, o gelo bóia, ou seja, a camada superficial da água fica congelada e forma uma espécie de cobertor gelado, mas é um cobertor, impedindo que a radiação penetre para o interior da água, do lago ou do mar. Ou seja, mantendo a água no fundo líquida, permitindo com isso que a vida se preserve lá dentro. Caso contrário, o congelamento começaria de baixo para cima, e aí estaria tudo morto. Então, o fato de a água ter esta propriedade muito peculiar é importantíssima para preservação da vida”, acrescentou Barros.

O físico falou ainda da era do medo que estamos atravessando. “Um momento que eu chamaria não de medo líquido, do Bauman, mas de um momento em que a sociedade está vivendo apavorada, com medo; um destes é o medo que a água potável no mundo venha a piorar. A água do mundo não vai acabar.” Então Barros falou sobre o surgimento da terra e da água, que provavelmente teria aparecido cerca de 4,5, 4,7 bilhões de anos atrás, logo depois da formação do planeta terra. Este formou-se através de poeira cósmica, ao mesmo tempo em que todo o sistema solar surge mais ou menos na mesma hora por condensação. Tudo indica que seria uma terra seca, quente, com grande atividade vulcânica. “Uma das teorias que eu acho muito agradáveis é a idéia de que a terra surgiu com a colisão de um cometa. Cometas que são objetos celestes compostos fundamentalmente de gelo, e, neste momento primordial da terra, pode ter havido uma colisão e essa água ficou na terra, através de vapor que a envolveu. Estima‑se que choveu torrencialmente cerca de 500 milhões de anos. Após este período longo de chuvas teriam se formado os oceanos, e aí num momento em que ninguém sabe – vários momentos, provavelmente – começaram a surgir organismos, entidades capazes de metabolizar a reprodução. A vida teria surgido neste momento, após as chuvas, quando a radiação solar conseguiu chegar a superfície da terra com mais intensidade e a atividade vulcânica diminuiu um pouco. Esta origem nutriu a terra de água em condições muito peculiares no planeta.”


Se a terra fosse um pouco mais próxima do sol, como Vênus, a radiação solar seria muito intensa, a temperatura mais alta, não haveria ocorrência de água líquida, o gás e o vapor d’água tenderiam a escapar. Caso a terra estivesse um pouco mais distante do sol, como Marte, a temperatura da superfície seria menor, a água estaria congelada ou em subterrâneos. “Se não tivesse a água, o planeta teria uma variação muito brusca de temperatura, um comportamento completamente inadequado para o que a gente entende como vida.”

Barros finalizou refletindo sobre a responsabilidade, hoje colocada sobre o indivíduo, quando deveria mirar o modelo econômico insustentável que continuamos a seguir. “O problema mais grave hoje, relacionado à poluição e perda de água potável, está no modelo econômico desenvolvimentista em que todas as soluções propostas visam o aumento da produção e do lucro. Ou seja, nós temos hoje o mundo em que, estima‑se, 90% da riqueza está na mão de 1% da população. Temos que ter consciência de que, em breve, deveremos abrir mão de certos confortos. Precisamos de mudanças de hábitos radicais para que a gente possa conviver no mundo com mais ou menos seis a sete bilhões de habitantes com consumo adequado para todo mundo. Estou preocupado com o tempo”, concluiu. 

O antropólogo Luiz Fernando Duarte, do Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social do Museu Nacional/UFRJ, trouxe a visão desta ciência, que consiste em tentar compreender cada cultura em si como uma maneira singular, ao mesmo tempo em que busca encontrar alguma coisa de comum, compartilhada entre estas singularidades que são as culturas. “O modelo que temos de natureza é um modelo construído por nossa cultura ocidental moderna. Não temos muita certeza se as outras culturas concebem o mundo que os cerca como uma natureza, tal como nós entendemos, e dentro dessa natureza está a água.”

 A variedade de manifestações dessa qualidade água é enorme. Para tentar encontrar um meio caminho entre essa pluralidade de sentidos de todas as coisas que compõem a natureza e de uma necessidade de se chegar a uma comparação comum, Duarte chegou a três definições. As coisas água: água doce, água salgada, água salobra, água pura, água benta, água mineral, chuva, neve, névoa, granizo, gelo, vapor, gêiser, fluxo, poça, onda, inundação, tsunami, borrifos, gotas. Aquilo que está na água: peixes, crustáceos, cetáceos, sereias, algas, conchas, corais, aquelas coisas que parecem água e que vem de fora, alimento, as bebidas excitantes, os meios de banho, que nem sempre são águas, mas nas diferentes culturas, por exemplo, na cultura grega era azeite e os nossos líquidos endógenos que nem sempre são água, como a lágrima, sangue, urina, secreções, contém proximidade com a água, enfim, as coisas água são infinitas. E os lugares água: mar, rio, lagoa, cachoeira, igarapé, planta, campo de neve, olho d’água, estuário, pororoca, praia, ribeira, orla, porto, dique, pia, atracadouro, plataforma, ilha. Tudo isso tem a ver com água, assim como piscina, aquário, tanque, fonte, bebedouro, tina, jarro, copo, jardim e planta.

 “Sem esgotar estas possibilidades infinitas de lugares água, este arrolamento é apenas para mostrar que isso pode ser reproduzido através das culturas um significado completamente diferente. Lembrei-me de um exemplo antropológico comparável, descrevendo a cultura Hiatmu, da Nova Guiné. Um nativo que vivia no interior da ilha é levado à beira-mar. Ele chega e há uma expectativa do antropólogo de ver o que será o impacto tão marcante do mar, do oceano. E ele fica sentado, inativo, na beira do mar, refletindo. Depois é perguntado a ele sobre o que refletia tanto e ele diz: ‘Finalmente, vi a manifestação concreta do mito de origem do meu clã, que é ondulação, as ondas’. O que chamou atenção dele nas águas do mar é uma idéia mitológica contida nas representações dos Hiatmu, e do clã especificamente dele, de que a idéia de que tudo é uma ondulação, uma espécie de teoria ondulatória básica do universo que era patrimônio da sua seção daquela sociedade.” 

Há também as ações água: beber, lavar, cozinhar, nadar, navegar, pescar. Marcel Moss fala das culturas nacionais onde as pessoas se lavam com a pia fechada e onde se lavam com a pia aberta, ou seja, com a água corrente ou com a água parada. “É por isso que, em muitas culturas, nas pias você tem a tampinha e um fiozinho de água. A cultura brasileira é uma cultura de água corrente, em geral. Em outras culturas nacionais européias é básico que você feche e se lave na água parada.” 

Para finalizar, essências águas. “Vamos encontrar dois caminhos imaginários principais: a dimensão judaico-cristã da cosmologia ocidental: o Gênesis, o dilúvio, Jonas e a baleia, a fonte de Suzana, a travessia do Mar Vermelho, o batismo no Rio Jordão, o Mar Morto e a pesca de almas, a transformação da água em vinho. Mas, sobretudo, o que vai se reter da tradição judaica para a tradição cristã é ideia do batismo, água redentora, daquela que elimina o pecado original, seja por imersão, seja por aspersão – há uma certa controvérsia interessante dentro das igrejas cristãs a este respeito, retomadas hoje nas igrejas pentecostais. E, é claro, uma série de transposições laicas dessa ideia da água como imediação da pureza. Água benta, água oxigenada, água ionizada, água sanitária, enfim, podemos ter uma série de reverberações das águas que limpam, das águas que purificam. A segunda é a direção greco‑romana, em três vias, na verdade. A primeira delas era da água como uso de sociabilidade, as termas ou banhos públicos romanos, e nas residências o implúvio, o pátio central das residências greco‑romanas onde se recebia a água das chuvas que era condensada na cisterna e representava realmente o núcleo da idéia de residência. O segundo são os usos sagrados, as chamadas águas lustrais, rituais de purificação, que também existiam na tradição greco‑romana; o terceiro, usos medicinais e terapêuticos, a água fazia parte de um sistema chamado sistema médico filosófico, pólo moral em que se opunha o quente, o frio, o seco e o úmido, e eram as bases da representação moral do mundo e condições dos temperamentos, humores etc. Aí entram as áreas terminais e minerais, também com transposições modernas, as termas ou banhos públicos, que nos trazem para uma série de aspectos mais ou menos isolados da nossa experiência contemporânea, que são os hamans da tradição turca, os spas da tradição germânica, as saunas, o ofurô que a gente busca do Japão.”

 E, finalmente, a praia moderna, bem descrita pelo historiador do uso da natureza, Alain Corbin – autor de O território do vazio. A praia e o imaginário ocidental (Companhia das Letras, 1989) que mostrou como o prazer, o lazer da praia foi construído na passagem do século XVIII para o XIX. Até então, as praias eram lugares absolutamente horripilantes, de naufrágio, de proximidade do abismo, de um lugar inquietante. A partir dali, passam a ser um lugar sanitário e terapêutico, onde a força da onda energizaria o corpo humano. Enfrentar-se com a onda passa a ser um dos primeiros sinais desse prazer e lazer que a praia proporciona, chegando às condições em que hoje, todos nós, mais ou menos, até uma certa idade, nos nutrimos desseprazer.

 Duarte concluiu comentando a tensão básica que caracteriza a cultura central moderna: a oposição entre o princípio da água como limpeza, frescor, vitalidade, fertilidade, envolvimento, vida, pureza, prazer, em contraposição à uma idéia de sufocação, naufrágio, afogamento, impureza, morte, um excesso ou carência de água, uma água má, contaminada. “Entre os exemplos, o tsunami recente no Oceano Índico, a inundação de Nova Orleans, pequenas águas cheias de larvas de aedes aegypti que estão nos cercando, a praia poluída de São Conrado, a chuva ácida, a ameaça da escassez.”

 Fechando a mesa, o poeta Ferreira Gullar falou de sua experiência pessoal com a água, de uma água vindo do mar, em uma ilha tropical, e trouxe a lembrança dela em sua infância. “Nasci numa ilha, conseqüentemente cercada por água em todos os lados, São Luís do Maranhão. Por todos os lados, inclusive, de cima também, pois o que caía de água, o que chovia… De modo que meu convívio com a água é uma coisa permanente. A tal ponto que quando eu saí de São Luís, a escolha que eu fiz foi o Rio de Janeiro, não por ter água aqui, por ser uma cidade à beira-mar, mas porque era a capital cultural do país. E a água que eu estava precisando naquela época era cultura, mergulhar neste oceano de conhecimento. Depois, conheci São Paulo, que é uma cidade maravilhosa, linda, mas onde eu não moraria, porque não tem mar, não tem praia. Tem água, mas é encanada, o rio está poluído, quer dizer… Essa idéia de que a cidade está perto da água e, especialmente perto do mar, é uma coisa que me constitui.”

Gullar retornou à sua infância: “Então, não só eu vivia nessa ilha como brincava dentro d’água, tomava banho no Rio São Luís, no Rio Anil. E foi assim, tomando banho naquela águas, que um dia aprendi o seu lado mortal; um dos nossos companheiros afogou‑se. E aquilo era divertido, jogar‑se do cais dentro d’água, mas parei de tomar banho no Rio Anil. E depois, quando você sai de uma cidade tropical como São Luís e vem para o Rio de Janeiro, onde a água é fria… É surpreendente saber que no Norte, no Nordeste do Brasil a água do mar é morna, entra-se nela como se estivesse numa banheira térmica. Então, é uma coisa que, para mim, era fundamental esta experiência da água, esta temperatura da água, porque a água muito fria nos mata também, né?” 

Em seguida, o poeta falou do conhecimento fenomenológico, que busca estar mais perto da experiência real da vida. “O que a ciência diz é, possivelmente, a mais alta expressão do conhecimento humano, mas existe um outro tipo de conhecimento que não é científico, que é fenomenológico, pois não adianta explicar que a água é uma porção de oxigênio e duas de hidrogênio, isso é o mesmo que dizer nada. Água é o trato, é a experiência da água, é beber a água, é sentir. Essa é a coisa do Merleau Ponty, é preciso estar mais perto da experiência real da vida. Podem me dizer que o cheiro do jasmim é conseqüência de uma série de moléculas que meu olfato percebe. Mas não diz o cheiro do jasmim, aliás, nada diz, nem o poema diz.”

 Para Gullar, “a arte não revela a realidade, a arte inventa a realidade. Porque eu posso falar da experiência da água, mas não é a água. Quer dizer, eu invento uma água que é parte da minha experiência, e isso enriquece a vida. Porque como não sabemos, de fato, por que estamos aqui e nem porque existe este universo fabuloso, tudo é inventado. Então não custa nada inventar outras coisas. Como dizia Picasso, é a mentira que é mais verdadeira do que a verdade. E é disso que vivem os poetas e as pessoas, de algum modo, quer dizer, de inventar a beleza, inventar a maravilha, de inventar…” 

E então o poeta falou de sua relação pragmática com a água. “Agora, na prática, eu, ao escovar os dentes, fecho a torneira. Estou tomando banho, vou me ensaboar, fecho a torneira. O problema da água, da ameaça que de algum modo paira sobre nós que faz eu fechar a água, que faz eu querer agredir o cara que em frente do meu edifício fica lavando a calçada com jorro d’água horas e horas. Na verdade falta criar a consciência necessária nas pessoas. É tanta água no Brasil, a cultura do desperdício da água tem que ser vencida. Eu me assusto, me preocupo, porque moro perto da praia de Copacabana, a uma esquina e meia, e daí a Antártica está derretendo e daqui pouco o mar vai invadir meu apartamento. Então, vivo assustado com este negócio. É uma coisa bastante preocupante e por isso esta iniciativa de trazer à discussão o problema da água é uma coisa realmente fundamental. Antigamente era só os verdes, os ecológicos que se incomodavam com isso, era um número muito reduzido de pessoas, mas eu vejo com otimismo esta preocupação com a preservação do planeta e o problema ecológico, o problema do aquecimento global, como isso hoje não é mais coisa de meia dúzia de despiroquetes, mas uma preocupação dos governantes e da população de quase todo o mundo. Quer dizer, isso é uma coisa realmente que me consola de uma maneira e, quem sabe, meu apartamento se salvará.”