Futuro das Águas: Impasses e perspectivas | Mesa 1
Por Bruno Dorigatti
O primeiro dia do Seminário Futuro das Águas tratou dos impasses e perspectivas, abordando os aspectos políticos, econômicos e sociais relativos às reservas de água doce no mundo e no Brasil.
Luiz Claudio Costa, doutor em química e reitor da Universidade de Viçosa (MG) abriu a mesa afirmando que a crise ambiental é mais grave que a falida crise econômica, cuja bolha estourou em setembro do ano passado. As projeções indicam que, ao final do século XXI, a demanda vai superar a oferta, disse Costa. “Não há dúvidas sobre as mudanças climáticas, cientificamente, apesar de algumas vozes ainda se posicionarem contra. É como uma nave em andamento, só precisamos saber onde vamos chegar. Há cenários mais otimistas e outros mais pessimistas. Isso depende da nossa postura. Devemos decidir que modelo vamos adotar, se aquele que nos foi vendido como um sonho, ou se vamos buscar um modelo mais sustentável.”
Um ponto fundamental para Costa é que não há mudanças climáticas, mas mudanças na atitude humana. Ele então apresentou uma série de dados estatísticos que apontam um crescimento desproporcional no uso da água, no consumo de fertilizantes, no uso de papel, da população urbana, do número de restaurantes McDonald’s. “Na realidade, nós tivemos uma mudança comportamental fascinante, sem considerar a nossa relação com a terra. As mudanças climáticas são uma resposta a esse comportamento. Nunca na história da nossa humanidade o nível de CO2, gás metano e óxido nitroso foi tão alto, pela ação humana – nós já tivemos, evidentemente, por ações naturais.”
A quantidade de água existente na atmosfera, nos solos e nos oceanos é estável. Muitos questionam, mas as mudanças climáticas não vão alterar este quadro. Segundo Costa, um dos gases que mais causa mudanças climáticas é a água – o vapor d’água, mais precisamente – que tem capacidade imensa de absorver a radição de ondas longas. “O aquecimento significa maior temperatura, maior capacidade de reter água da atmosfera, maior evaporação, maior umidade atmosférica. O efeito estufa potencializa isso tudo, temos o aumento da intensidade de chuvas. E já estamos observando, como conseqûëncia, secas em excesso e inundações em excesso. Vamos ter com mais freqûëncia a ocorrência dos extremos. Isso tudo tem a ver com a disponibilidade de água.”
Ao final de sua fala, Costa apontou a inércia humana como fator preponderante para que o quadro siga inalterado, ou alterado de forma muito lenta. “Participei em 1989 da formulação do Protocolo de Kyoto. Tínhamos a idéia do problema. Aí você reconhece o problema, faz os acordos, mas, enquanto isso, o tempo vai passando e a situação da terra muda. E enquanto não tomamos as decisões necessárias, alguém está pagando o preço. Tecnologia disponível nós temos, o que precisamos é do modelo adequado.” E finalizou citando Mahatma Gandhi, que, muito antes dessas preocupações, havia afirmado: “A terra possui o suficiente para o sustento de todos, mas não para a ganância de uns poucos”. Vivemos a vingança do excesso.
A seguir, o deputado federal Fernado Gabeira (PV-RJ) falou de alguns problemas e perspectivas, começando pela classificação do acesso à água como um direito humano, o que justificaria a intervenção em outro país que dificultasse esse acesso. O Brasil, não aceita essa tese, considera a água um direito básico, uma necessidade. “A posição brasileira deriva do fato de termos grandes reservas de água e termos também medo de sermos ocupados, invadidos a propósito de um mau uso da água, pois ela é o elemento estratégico do século XXI. As guerras que nós vimos no século XX em torno do petróleo talvez se desloquem para a questão da água. Talvez no futuro cheguemos a uma governança mundial da água, como já temos em parte da água na Antártida. Temos que tomar todas as precauções para que ela não seja objeto de guerra.”
O Brasil possui atualmente três leis que tratam da água. A primeira instituiu em 1997 o Sistema Nacional de Recursos Hídricos. Outra, criou a Agência Nacional da Água. E há o Projeto de Lei 1616, que estabelece o pagamento pelo uso da água. “Essa terceira questão é muito importante, pois vai, de certa maneira, obrigar as pessoas e as empresas, sobretudo, a terem um comportamento mais comedido diante da água. Este projeto já era para estar funcionando, mas ainda há algumas dúvidas. No projeto do qual sou relator, afirmo que o dinheiro do pagamento pela água tem que ser revertido integralmente para a bacia, para que você possa manter o rio plantar árvores nas encostas. Mas o governo federal tem certa resistência. Acredita que o dinheiro deva ir para o Tesouro Nacional para depois retornar para a bacia. Sabemos que isso demora muito e às vezes não chega”, afirmou Gabeira.
De qualquer maneira, começamos a implementar os Comitês de Bacias Hidrográficas, que decide as questões ligadas àquela bacia hidrográfica da qual faz parte e é composto pelos governos federal, estadual e municipal, além dos usuários e de organizações não-governamentais (ongs). Um instrumento bastante democrático, na opinião do deputado, e que pode apresentar novidades, pois você vai estar governando uma região a partir de um exame completo da questão da água. A idéia de criar um Governo do Pantanal, por exemplo, é que este coincidiria com um Comitê de Bacia.
Outra questão levantada por Gabeira foi a exportação de água – os Estados Unidos têm grande necessidade de importá-la. “No momento, acho que já existe pirataria, levam muito água do Brasil e trazem a água de lastro, nas embarcações, que causam muitos problemas.” Além disso, a suposição de que o Brasil tem muita água distribuída de forma equânime é equivocada. Assim como na distribuição de riquezas, a água não é dividida de forma harmônica. “Temos muita água, mas há regiões do Brasil que vivem com o mínimo ou menos que o mínimo necessário. Aí entram as soluções para isso. Como fazer com que o Nordeste tenha água? Existe o debate a respeito da transposição do Rio Francisco. O projeto não resolve todo o problema – e este não se limita a transpor as águas, envolve o depósito, a distribuição dela. É um problema mais complexo que este, mas também não sei se é o melhor caminho. Não podemos nos fixar somente em grandes obras de engenharia, é preciso pensar em como se distribui, armazena e se usa a água. Temos hoje um desperdício de quase 40% da água tratada, é uma coisa espantosa. Podemos estimular as pessoas a armazenar água da chuva nos prédios, dando descontos no IPTU, por exemplo. A questão econômica é importante, as pessoas prestam atenção quando mexe no bolso.”
Por fim, segundo Gabeira, os políticos não se interessam pelo tema, é preciso um grande trabalho cultural, não só com eles, mas com toda a sociedade. Instituir, por exemplo, disciplinas no ensino médio e fundamental que dêem rudimentos de defesa civil, como já vem sendo trabalhado na questão dos grandes desastres,. A água deve seguir o mesmo caminho nas salas de aula.
Guido Gelli, presidente do Jardim Botânico do Rio de Janeiro, comentou o cuidado com os rios que existe na Europa, mas quase nulo no Brasil, onde não há herança dessa tradição, apesar da colonização européia que tivemos. “Isso pode ter haver com o fato de o Brasil sempre ter sido objeto de grande cobiça, de interesses econômicos e exploração. O próprio nome do país se origina do primeiro grande produto explorado e enviado para a Europa. Os rios sempre foram considerados depositários de rejeitos.”
Essa cultura de descaso com o rio pode ser percebido analisando o Rio Carioca. Ele leva o nome daqueles nascidos no Rio de Janeiro, tem sua origem nas Paineiras, e pode ser visto pela última vez no Largo dos Boticários, no Comes Velho. Dali em diante, vira um valão, por todo o bairro de Laranjeiras, até desaguar na Praia do Flamengo, na Baía de Guanabara. Gelli reafirmou o que Gabeira havia colocado, de que somente quando começar a pesar no bolso as pessoas vão dar maior atenção à questão. Outro caminho que deve ser colocado em prática em breve é a instalação de hidrômetros individuais em todas as residências – hoje em dia, os prédios contam com um hidrômetro somente. “Isso vai fazer com que as pessoas tenham uma noção do seu valor”, ainda que atualmente paguemos apenas pelo fornecimento e não pela água em si.
Sobre a transposição do Rio São Francisco, Gelli acredita haver falta de cohecimento e debate. “Ela mexeria em 3% do total do rio. Há pessoas fazendo alarde sem entrar no mérito técnico da questão. A mídia destaca a greve de fome do bispo, mas não analisa através do debate entre os cientistas que se dedicam ao tema. Sem essa discussão mais técnica não é possível decidir”, concluiu.
Participou ainda desta primeira mesa Paulo Canedo, engenheiro da Coppe/UFRJ e co-autor do livro O espírito das águas (Novas Direções, 2008). Canedo apresentou uma quantidade enorme de dados e estatísticas sobre o tema e vamos analisá-los no post seguinte.