Memória e resistência: estudantes de escola municipal são autores de livro sobre o Morro do Engenho
Por Julia Carvalho.
Nascido a partir da identificação de uma escassez de registros acerca da história do Morro do Engenho, na Zona Norte do Rio de Janeiro, o livro ‘Sobre nós, por nós: Memórias do Morro do Engenho’ reúne relatos de alunas e alunos da Escola Municipal Marechal Estevão Leitão de Carvalho, localizada no bairro Engenho da Rainha, e chama atenção para a necessidade da construção de memórias das favelas e periferias suburbanas do Rio.
Desde o início de seu trabalho, em 2008, o Instituto 215 vem buscando se aproximar de pautas relativas a favelas, periferias e subúrbios da cidade. Em projetos como o Regiões Narrativas, realizado no complexo de Manguinhos e na Rocinha, e o Histórias em Rede, voltado para formação de mediadores de leitura no Morro do Juramento, foi possível observar mais de perto a grande vulnerabilidade econômica, social, espacial e cultural que marcou e ainda marca a existência de alguns desses espaços. O Morro do Engenho – favela localizada entre os bairros de Inhaúma e Engenho da Rainha, na Zona Norte do Rio – não é exceção.
O contexto
Onde buscar forças para quebrar os estigmas e encontrar os caminhos para sair da invisibilidade?
Ingrid Araújo, professora da Escola Marechal Estevão Leitão, pesquisadora e uma das organizadoras do livro, que conversou com o Instituto 215, defende a importância do papel da escola como lugar de registro das memórias e da produção de cultura do território. Além disso, chama atenção para os estudantes como agentes pensadores das suas próprias existências.
Professora da rede municipal do Rio de Janeiro há mais de 12 anos, Ingrid já atuou nas localidades de Manguinhos, Maré, Complexo do Alemão e Engenho da Rainha. Após anos de trabalhos realizados, carrega a vivência necessária para afirmar que as ações de organizações e institutos da sociedade civil organizada são imprescindíveis como complemento para a formação cultural, a produção das memórias e o registro da existência dos moradores dessas favelas, porém, trata-se de um aparato social que não se mostra tão presente no dia a dia do Morro do Engenho.
Ingrid constatou que, na sala de leitura da escola, só havia um livro retratando uma realidade próxima a deles, O sol na cabeça, de Geovani Martins, uma coletânea de contos que narram a infância e a adolescência de moradores de favelas, passando por questões como a violência e a discriminação racial. E foi a partir do trabalho com esse livro que a professora e seus alunos começaram a pensar as diferenças entre favelas e periferias da Zona Norte e da Zona Sul, levando em conta a percepção deles sobre a existência de relações de privilégio na cidade. Sua proposta, então, foi a construção de uma publicação com textos próprios, originais e sem cópias da internet – um reflexo da relação emocional que cada um(a) construiu com seu território.
Dados veiculados pelo G1 e Folha de São Paulo mostram que a Zona Norte concentra 60% das incursões policiais que ocorrem no Rio e que a Zona Sul, em contrapartida, é privilegiada pela distribuição do policiamento preventivo, em números absolutos. Dentre alguns fatores, a “análise dos processos de turismo e gentrificação” (Fagerlande, 2021) pode ser uma das causas que nos ajudam a entender como “o turismo na favela aumentou com a ocupação militar de algumas favelas da Zona Sul do Rio para a instalação de Unidades de Polícia Pacificadora” (Fala Roça, 2023), um impulsionador para que favelas como o Morro do Juramento e o Morro do Engenho, não-turísticas e histórico-geograficamente discriminadas, sejam ainda mais marginalizadas.
‘Sobre nós, por nós’: autoria coletiva e pertencimento
O processo de pesquisa, troca de ideias e escrita, segundo Ingrid, foi importante para a construção da autoestima dos alunos, que “achavam que não tinha porque falar sobre o Morro do Engenho, que não era relevante”. O ato de ouvir o outro e a identificação, então, aparecem como uma virada de chave para que eles pudessem encontrar a potência do seu território, sua ancestralidade e desenvolver um maior senso de pertencimento.
A frase que nos lembra que “um povo sem memória é um povo sem história”, de autoria da historiadora Emília Viotti, dialoga muito bem com o processo de produção desse livro, que resgata as histórias da favela. Com os estudantes em primeiro plano, as pesquisas para os textos foram feitas através de fontes orais, entrevistas, memórias pessoais e outras formas de investigação, com personagens em primeira pessoa ou não, e abordam desde um levantamento de fatos históricos até a apresentação de personagens ilustres do território, além de eventuais homenagens. A ideia foi empoderar os estudantes, agora, porta-vozes da história de amigos, familiares e demais moradores da sua comunidade.
A participação efetiva de toda a escola na execução do projeto também é um ponto a ser destacado: dentre as turmas do segundo segmento, alunos do sexto ano desenharam as ilustrações, alunos do sétimo ano produziram um mural que, posteriormente, tornou-se a capa do livro e alunos do oitavo e nono anos foram os autores das produções textuais. Vale destacar também que a parceria entre Carlos Pires, professor de Literatura Comparada do curso de Letras da UFRJ e um dos responsáveis pela produção do livro, e a professora Ingrid, em prol da divulgação da literatura periférica e marginalizada, possibilitou o nascimento desta obra que amplifica as muitas vozes que compõem o Morro do Engenho da Rainha, sua história e relações sociais. Os exemplares impressos do livro foram distribuídos para a comunidade escolar e famílias do território, em lançamento marcante para os alunos, no último dia 3 de maio de 2024.
O projeto teve origem a partir da pesquisa de mestrado, ainda em andamento, de Ingrid Araújo no Programa de Pós-Graduação em Ciência da Literatura da Universidade Federal do Rio de Janeiro, com o título “Literatura e Decolonialidade: Raça e Favela no Acervo da Sala de Leitura no Morro do Engenho”. Sua realização se deu através de uma parceria entre a escola pública e a universidade, viabilizada por uma ação de extensão do Laboratório da Palavra – Letras/UFRJ, com suporte da FAPERJ e CAPES, com apoio do PPGCL e Instituto 215, através do projeto Diálogos Suburbanos.
O Instituto 215 disponibiliza aos seus leitores, em primeira mão, o resultado dessa iniciativa. Lembrar é resistir!
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