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O que é cultura, afinal?

fev
2012

Por Marília Gonçalves e Rosilene Miliotti 

O que é cultura? Tempo vai, tempo vem, e a discussão sobre o conceito de cultura é sempre um debate atual. Cultura é o que tem qualidade? E quem define o que tem qualidade? A cultura de massa é ruim? Existe uma cultura boa e outra que possa ser considerada lixo

Desta vez, o que trouxe o tema à tona foi o resgate de uma coluna publicada em 2007 na Folha de São Paulo. A coluna é da jornalista Barbara Gancia e se intitula “Cultura de Bacilos”, referindo-se aos artistas de periferia como bactérias. Ela foi objeto de grande repercussão no Twitter nos últimos dias. Afinal, existe uma cultura na periferia? Para a jornalista, não.

O que, muitas vezes, os formadores de opinião ou aqueles que podem ser considerados cultos esquecem é que “cultura é a própria condição da comunicação”. A definição é da antropóloga e professora da UFRJ, Ilana Strozenberg. “Não existe cultura superior ou inferior. Tudo que permite às pessoas se comunicarem é uma cultura legítima”, afirma a professora. Essa pequena palavra usada comumente como adjetivo que designa a forma de expressão de maior valor, é, para a antropologia, toda manifestação do homem em sociedade. Para a professora, a noção do senso comum sobre o conceito empobrece o processo cultural. “É como se as formas culturais tivessem que estar numa redoma. O bom é a diferença, a multiplicidade. O interessante é que as culturas possam conversar entre si”, afirma.

Para o cineasta e secretário de cultura do município de Nova Iguaçu, Marcus Vinícius Faustini, a cultura é mais do que um fenômeno artístico ou um conjunto de costumes. Ele destaca a importância das manifestações populares no contexto das desigualdades urbanas. “Cultura hoje é um dos principais campos de disputa dos espaços populares na superação das representações históricas que colocam o popular como desprovido de subjetividade”, afirma o cineasta.

Indústria cultural periférica

A elitização do conceito de cultura reflete-se na sociedade de diversas formas. A falta de investimento público nas atividades culturais da periferia, por exemplo, é uma delas. “Com este conceito excludente de cultura aplicado à política pública, as verbas iam sempre para o mesmo lugar. Hoje, há uma distribuição um pouco mais democrática, o que muda não apenas o status financeiro dessa cultura, mas também o simbólico”, afirma Ilana. A distribuição é, de fato, ainda muito pouco democrática. Os 180 mil reais destinados pelo projeto Pontos de Cultura para grupos comunitários das periferias ficam muito aquém de todo o déficit de anos de exclusão dos programas culturais e da escassez histórica de equipamentos culturais.

Não está incluído na conta todo o dano moral causado a esses artistas, muitas vezes publicamente taxados marginais ou baderneiros. No último ano, um decreto na cidade do Rio de Janeiro chegou a proibir os bailes funk de comunidade. Nem mesmo nas favelas “pacificadas” o ritmo era permitido, até que o decreto caiu frente a uma grande mobilização dos movimentos sociais. Para a historiadora e professora da UFF, Adriana Facina, este tipo de política pública tem a função também de garantir a liberdade de expressão desses jovens artistas da periferia. “Existe hoje um grande problema de liberdade de expressão nas periferias, que é a limitação inclusive pela força policial de certos tipos de expressão”, afirma a professora.

Funk e hip-hop em números

Uma pesquisa publicada pela Fundação Getúlio Vargas há pouco mais de um ano revela as quantias que o funk movimenta, enquanto mercado, na região metropolitana do Rio de Janeiro. Certamente seria motivo de espanto para muitos descobrir que a indústria movimenta mais de R$ 1,4 milhão todo mês, somente nessa região. A média de realização de bailes pelas equipes de som é de 219 festas por semana, mais de 30 por dia. Na lista da pesquisa, foram considerados MCs, DJs, equipes de som e camelôs. Para a professora Adriana Facina, que desenvolve desde 2008 o projeto de pesquisa “Eu só quero é ser feliz: música e sociabilidade entre a classe trabalhadora no Rio de Janeiro”, o funk gera empregos diretos e indiretos. Além dos MCs, dançarinos e dançarinas, DJs e empresários, existem os empregos nas equipes de som – como montadores e técnicos – além dos comerciantes – os “barraqueiros” – que muitas vezes investem nos bailes funk na esperança do grande retorno em vendas.

A pesquisa revela que, a despeito das acusações de que os bailes seriam locais de venda e uso de drogas apenas, o produto mais vendido nos dias de festa é bala “Halls”. Para Adriana, isso mostra que os jovens buscam diversão, “beijar na boca”. A professora afirma também que as drogas podem estar em qualquer lugar, inclusive nas festas do Centro e Zona Sul da cidade do Rio de Janeiro.

O poeta Sérgio Vaz, idealizador do Sarau da Cooperifa, realizado em São Paulo, concorda com Adriana. “A classe média usa droga, mas não é violenta, fica curtindo um barato”, compara. Para ele, ninguém nasce violento. “O que estimula a violência é a falta de dinheiro, emprego, saúde, educação. O que estimula a violência é você ficar mais de quatro horas em um hospital com o seu filho passando mal e precisando de atendimento”.

O que fica claro a partir de manifestações como a da jornalista Barbara Gancia, e dos que compartilham da sua opinião, é o preconceito, a resistência à diferença. Mas essa é uma história antiga. O samba, no início do século passado, foi objeto de grande preconceito. Seus artistas eram considerados malandros, bandidos, até que se tornou patrimônio cultural do país. A desigualdade existente no Brasil não é resultado apenas da diferente distribuição da renda. É preciso distribuir os saberes e misturar os costumes para se transformar a realidade.

(Post originalmente publicado no Observatório de Favelas)