Por dentro das Imagens do Povo
Por Bruno Dorigatti
O fotógrafo João Roberto Ripper trabalhou em alguns dos mais conhecidos jornais do país, alguns já desaparecidos, como o Diário de Notícias, a Luta Democrática e o Última Hora, outros ainda em circulação como O Estado de S. Paulo e O Globo. Depois da passagem pela Agência F4, resolveu criar o “Imagens da Terra”, que fazia registros documentais das questões sociais do país, sobretudo a questão da terra. “Era um projeto de colocar a fotografia a serviço dos direitos humanos. Esse projeto existiu por oito anos, depois a gente faliu”, conta ele em entrevista ao Fazendo Media.
Foto de AF Rodrigues. Todos os direitos reservados. © Copyright Imagens do Povo
Porém, não tardaria para o fotógrafo retomar o projeto, agora dentro de um complexo de favelas cariocas. Quando esteve na Favela da Maré, que integra o Complexo da Mare, onde vivem cerca de 130 mil pessoas, distribuídas por 16 comunidades populares na zona norte do Rio de Janeiro, teve a idéia de ensinar a arte da fotografia para os moradores e assim surgiu o projeto Imagens do Povo, constituído pela Escola de Fotógrafos Populares e pela Agência de Fotografia e do Banco FotográficoImagens do Povo. Formado majoritariamente por moradores de comunidades, da baixada, do subúrbio e de universitários, o projeto vem ampliando a possibilidade para que os fotógrafos oriundos do projeto possam atuar profissionalmente, além de abrir portas para o mercado de trabalho com o fotojornalismo e atender a clientes externos, seja na venda de fotos avulsas, ou na encomenda de serviços fotográficos. A temática é basicamente “de espaços e temáticas populares e também de assuntos relacionados aos direitos humanos”, como informa o site do Observatório das Favelas, responsável pelo projeto. Mas não só. O objetivo primordial do projeto é desenvolver uma concepção fotográfica crítica, tanto na formação, como na produção e difusão de imagens.
O curso na escola, atualmente com dez meses de duração, acontece na Casa de Cultura da Maré, e ao final os alunos desenvolvem ensaios fotográficos que passam a integrar o Banco Fotográfico. A formação inclui a parte técnica, que ensina o manuseio do equipamento e o tratamendo de imagens, além da linha pedagógica consistente e definida na temática dos direitos humanos. A linha documental procura focar na visão autoral, que tem um grande poder de comunicar e transformar as noções da favela na cidade, um de seus principais objetivos. Um foco crítico, que procura “formar documentaristas fotográficos capazes de desenvolver trabalhos autorais de registro de espaços populares, valorizando a história e práticas culturais de suas comunidades, além de estimular a afirmação de uma identidade ‘positiva’ de si próprios e da população residente nesses espaços”, informa o site do projeto. Que a favela ganhe, cada vez mais, além da voz para se expressar, a peculiariedade de seu olhar, para registrar e focar no cotidiano, no dia-a-dia, nas alegrias, e também nas intempéries, nos problemas e nas tristezas que cercam as comunidades cariocas.
No começo, o maquinário utilizado era todo analógico. Hoje, são basicamente máquinas fotográficas profissionais digitais, além de equipamento para a edição, computadores, laboratório de informática, conseguidos aos poucos, desde 2004, quando o projeto foi criado, e conforme a ajuda de apoiadores. O projeto contou com o patrocínio de Furnas em 2004, do Unicef em 2006 e do Criança Esperança/Unesco em 2007. Em 2006, o curso da Escola de Fotógrafos Populares teve sua carga horária estendida para 540 horas e o programa passou a oferecer três módulos: Linguagem Fotográfica, Informática Aplicada à Fotografia e Fotojornalismo, obtendo reconhecimento da Pró-Reitoria de Extensão da Universidade Federal Fluminense, que concede diplomas aos formandos. As aulas incluem introduçào à antropologia, pesquisas sobre favela, história fotográfica, direitos humanos.
Foto de Fábio Caffé. Todos os direitos reservados. © Copyright Imagens do Povo
Foto de Bira Carvalho. Todos os direitos reservados. © Copyright Imagens do Povo
A Agência-Escola de Fotografia Imagens do Povo faz a ponte com a sociedade e o mercado, com a difusão, circulação, exibição e venda das imagens produzidas pelos fotógrafos. O material resultante do trabalho das turmas da Escola de Fotógrafos Populares é incorporado ao Banco Virtual Imagens do Povo, inaugurado em maio de 2005, que além do material produzido pelos alunos, possui também imagens de fotógrafos como Ripper e Ricardo Funari, além de outros fotógrafos que comungam com a idéia do projeto. O direito de utilização das imagens é vendido como em qualquer agência de fotografia, recebendo o autor 50% do valor da venda. O valor de referência é o da tabela de preços mínimos do Sindicato dos Jornalistas Profissionais do Rio de Janeiro e da Federação Nacional dos Jornalistas.
Este olhar crítico – que valoriza a história e práticas culturais locais, que busca ir além da simplificação que a mídia faz diariamente destas localidades menos favorecidas, onde o Estado é basicamente ausente –, apesar de cada vez maior, sobretudo pelas possibilidades que as novas tecnologias de comunicação e informação permitem, ainda tem dificuldades para alcançar os grandes meios de cominicação.
“Há outros aspectos na vida dessas pessoas, mas o foco na mídia ainda é a falta, a carência, a violência, o Estado ausente. Que se fale dos problemas, mas não só. Geralmente o ponto de vista é negativo, ligado à polícia e ao tráfico. Há vários tipos de violência, mas o foco é a violência letal”, diz Kita Pedroza, coordenadora da agência Imagens do Povo. As exceções, ainda que esparsas, aparecem por vezes. A escola leva profissionais para dar aulas, palestras, conversar com os alunos. Um dos convidados foi Marizilda Cruppe, fotógrafa de O Globo. Ao voltar à redação ela sugeriu a idéia para uma matéria com um olhar diferenciado. Em março, A Revista do Globo, que circula aos domingos, acabou por dar a capa e algumas páginas para os registros do cotidiano, focados no entretenimento, na diversão, nos jogos e brincadeiras e no carnaval nas comunidades, produzidos por oito alunos da segunda turma formada na escola. Nas fotos, vemos crianças e jovens jogando bolinha de gude, soltando pipa, bricando com bolas de sabão, brincadeiras muito populares. Vemos jovens e adultos nas lajes, um dos grandes espaços de sociabilidade nas favelas, tomando banho de piscina e lagarteando ao sol, rindo, se divertindo e curtindo os momentos de folga.
Foto de AF Rodrigues. Todos os direitos reservados. © Copyright Imagens do Povo
Foto de Naldinho Lourenço. Todos os direitos reservados. © Copyright Imagens do Povo
Essa maior visibilidade e entendimento do projeto tem proporcionado então um maior espaço na mídia? Não necessariamente, diz Kita, o que não é um problema. “A grande mídia não procura a gente, já tem seus fotográfos ou free lancers. Mas veiculamos de outra maneira. Vendemos o material para a Unicef, para campanhas, temos bastante relação com o terceiro setor”, conta ela. Com os fotográfos de jornais, porém, há um intercâmbio interessante. Eles dão palestras, trocam idéias com os alunos sobre como fotografar essa realidade e esse cotidiano de maneira diferente.
“É um processo lento, consolidar um banco de imagens demora”, afirma Kita, referindo-se ao arquivo formado com trabalho dos recém-formados. “O trabalho ainda está no início, o equilíbrio da estrutura financeira é difícil.” Atualmente, o Fundo Itaú de Excelência Social apóia o projeto; reformou e equipou a escola,que formou até o momento 50 fotógrafos em duas turmas. A turma atual conta com 53 alunos. A equipe para dar conta do restante – a agência e o banco de imagens – é reduzida. Falta, por exemplo, uma pessoa que pudesse só cuidar do site, outra para ficar responsável pela divulgação. Atualmente, é a mídia espontânea que tem feito esse papel. Sem falar no serviço prestado aos alunos e recém-formados, como agenciamento, contatos e pedidos para fechar trabalhos, emissão de nota fiscal, acompanhamento na orientação de pauta e ajuda e apoio na edição das imagens, cujo pagamento muitas vezes é feito com equipamento fotógrafico, já que os alunos utilizam máquinas do projeto até conseguirem adquirir o seu.
Foto de Rodrigues Moura. Todos os direitos reservados. © Copyright Imagens do Povo
Foto de Fábio Caffé. Todos os direitos reservados. © Copyright Imagens do Povo
Voltando à temática da violência, que faz parte da realidade desse lugares, às vezes de forma intempestiva, Kita diz que é uma questão delicada por colocar em risco os próprios fotógrafos, ao mesmo tempo em que é preciso denunciar e não corroborar com a visão dominante de violência associada às comunidades. “É um trabalho de formiguinha”, conclui.
E o olhar que estes fotógrafos desenvolvem? “Ele é composto de uma familiaridade, daquilo que eles conhecem, onde vivem. A particularidade do olhar, a capacidade de falar sobre o lugar de forma mais íntima, isso que interessa. Não é criar um juízo de valor, classificar como um olhar melhor. Não. É um olhar mais próximo. Há o olhar da Linha Vermelha, mas não é o de dentro. É um direito que estas pessoas devem ter de mostrar a sua visão também. E a confiança com as pessoas que já se conhecem pode ajudar. Mas também tem os vícios do olhar. A busca é sempre pelo equilíbrio entre o próximo e o distante”, diz a coordenadora.
Foto de Rosilene Milioti. Todos os direitos reservados. © Copyright Imagens do Povo
A procura por replicar a iniciativa tem aparecido aos poucos. A Escola Sócio-Educativa do Degase (ex-Febem e Funabem) tem intenção em utilizar a metodologia com seus internos. As oficinas do projeto Memórias do PAC foram ministradas por alunos da escola, que também atuam no projeto Juventude Cidadã, em Nova Iguaçu. De Londres também veio a intenção de replicar a metodologia do projeto. São ainda sementes sendo plantadas, para ficarmos com a metáfora de Kita.
A iniciativa já resultou em alguns livros, em parceria com o Unicef, Petrobras, Furnas e Light, caso de Até quando?, lançado em 2005, que aborda essa juventude que vive entre a alegria e a dor. Há projetos institucionais, como o livro Light nas comunidades, que em dois volumes registra o resultado do projeto Comunidade Eficiente, cujo objetivo foi a melhoria da prestação do serviço e uso eficiente de energia.
Mas, e um livro, um documentário que pudesse registrar todo o percurso e a importância que o Imagens do Povo já alcançou? “É uma idéia, um desejo que temos, de realizar esse livro. Falta um projeto específico”, revela Kita. O documentário Abaixando a máquina – Ética e Dor no Fotojornalismo Carioca[veja o trailer], do fotógrafo Guillermo Planel e do jornalista Renato de Paula,lançado em 2008, aborda o fotojornalismo no Rio de Janeiro, os fotógrafos e suas experiências, sobretudo da violência, e acompanha alguns dos formados pela escola em suas documentações. Ainda que não específico sobre o projeto, indica que o Imagens de Povo já cumpriu com um dos seus objetivos, de inserir estes jovens do lado de cá da cidade partida. Resta saber quanto tempo ainda falta para ser objeto de detalhado registro, a mapear seus pequenos, porém decisivos passos, sobretudo para os alunos que passaram por ele.
> Acompanhe as novidades do projeto no blog do Imagens do Povo
Foto de AF Rodrigues. Todos os direitos reservados. © Copyright Imagens do Povo
Foto de Francisco Valdean. Todos os direitos reservados. © Copyright Imagens do Povo