Somos todos ilegais?
Por Bruno Dorigatti
A legislação no descompasso da sociedade
Vivemos, hoje, cercados de ilegalidades por todos os lados. No cotidiano, se quisermos levar ao pé da letra a legislação vigente no Brasil, em diversas áreas, vamos ver que estamos todos – ricos, classe média e pobres, educados e analfabetos – cometendo pequenos (ou nem tão pequenos assim) atos de ilegalidade.
A pergunta do título leva a uma outra questão. Somos nós que estamos nos eximindo de nossas responsabilidades como cidadãos, ou é a legislação que já não consegue acompanhar a dinâmica dos dias de hoje? Se é que, algum dia, a lei conseguiu, de fato, dar conta da realidade social. Para o advogado Joaquim Falcão, a questão é bem mais ampla.
O problema
Uma série de casos ilustram o dilema. As situações do dia a dia da cidade que vão de encontro à legislação vigente são praticamente incontáveis. Nas blitz policiais, por exemplo, um guarda se vê diante da possibilidade de encontrar 213 infrações, se somadas aquelas cometidas pelo motorista, pelo veículo e pelo pedestre. A probabilidade estatística de alguém escapar de alguma delas, portanto, é zero, já que estas infrações incluem, além de questões objetivas, como dirigir com o braço para fora, usando um calçado que não cubra todo o pé, buzinar entre as 22h e às 6h, ou estacionar a mais 50 centímetros da calçada, outras, bem mais subjetivas, como conduzir o veículo em mau estado de conservação e dirigir sem atenção ou cuidado. Ora, quem decide o que é um carro em mau estado ou uma direção pouco cuidadosa?
Outro ponto enfatizado por Joaquim Falcão é a ambiguidade entre as noções de informalidade e de ilegalidade. No caso do comércio, por exemplo. Segundo o artigo 180 do Código Penal, em seu parágrafo terceiro, é proibido “adquirir ou receber coisa que, por sua natureza ou pela desproporção entre o valor e o preço, ou pela condição de quem a oferece, deve presumir-se obtida por meio criminoso”.
Portanto, não só quem vende, mas quem compra algo de origem duvidosa está comentendo uma ilegalidade. Mas como classificar esse tipo de prática: ela é informal ou ilegal? No Brasil, segundo dados da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), no período entre 1990 e 1999, 60% do total dos trabalhadores estavam na informalidade. O número vem se reduzindo e, entre 2000 e 2007, caiu para 51%. Neste ritmo, entretanto, só por volta de 2090 é que zeraríamos o trabalho informal no país. Já na América Latina este número vem crescendo. De 52% da população, em 1990, passou para 57%, em 2007.
Em números absolutos, os países emergentes têm algo entre 900 milhões e 2 bilhões de trabalhadores informais. Mas essa expressão é uma licença poética dos economistas para não dizerem ilegais, que seria a expressão da lei, uma vez que estas pessoas não assinam carteira de trabalho, não contribuem com o FGTS, não têm aposentadoria nem auxílio-doença, além de não pagarem alguns impostos. Considerá-las ilegais a ponto de prendê-las e acabar com sua incipiente fonte de renda, entretanto, não ajuda em nada a resolver o problema, pelo contrário. Sabemos que grande parte do trabalho informal tem origem em condições de pobreza, em ambientes de violência, onde criminosos gerenciam muitas atividades ilegais. Mas se não for possível regulamentar e desburocratizar pequenas atividades, o resultado será ainda mais pobreza e violência.
O problema se agrava quando observamos o Estado patrimonialista no qual estamos inseridos, que trata de seus direitos corporativos em primeiro lugar, o que acaba por moldar a sociedade. Um estudo sobre o número de recursos extraordinários e agravos de instrumento distribuídos no Supremo Tribunal Federal (STF), entre julho e novembro de 2007, revela que mais de 40% do total de casos diz respeito às próprias questões do Estado: em primeiro lugar, com 20,32%, os de servidores públicos e militares e, em seguida, com 20,17%, as questões fiscais. Já a regulação da telefonia, que atende de maneira geral à sociedade como um todo, só aparece em terceiro lugar, representando 11,60% dos casos.
A questão habitacional, para Joaquim Falcão, é um dos casos em que o dilema dos limites entre a informalidade e a ilegalidade se coloca de forma mais aguda. Existem, hoje, no Brasil, 12 milhões de habitações irregulares. Se considerarmos que há, em média, quatro habitantes por moradia, isto significa uma população de 48 milhões de pessoas, ou seja, 26% do total de brasileiros. Como lidar com isso? Por um lado, a legislação prevê o usucapião, segundo o qual, depois de cinco anos de ocupação, se pode requerer a posse definitiva de um imóvel na justiça caso este não tenha sido reivindicado por ninguém. Por outro, para tanto, é necessário apresentar CPF, carteira de identidade, comprovante de residência, testemunhas, nome e endereço dos vizinhos, levantamento topográfico e memorial descritivo da área e a matrícula do imóvel usucapiendo ou do todo maior em que se insere a área pretendida. É complicado, senão inviável.
Do mesmo modo, caso alguém esteja comprando ou vendendo um apartamento, vai precisar de 16 certidões para conseguir a escritura definitiva: uma do distribuidor da Justiça Federal; seis dos registros de distribuição estaduais; duas de interdições e tutelas; uma de ônus reais; uma de situação fiscal imobiliária; uma de situação enfitêutica; duas negativas de protesto; uma negativa de débito da Receita Federal e do INSS; e, caso seja casado, certidão de casamento.
Tudo isso, afirma Joaquim Falcão, “só comprova que, em certos casos, tem que se mudar a lei, pois ela não comporta mais a realidade. É preciso mudá-la para que reflita a complexidade da vida social”.
O último caso citado foi o da indústria fonográfica, que, ano a ano, vê seus lucros diminuírem (embora, segundo o palestrante, ainda superem em muito o de outros ramos da indústria cultural). Segundo dados da Associação Brasileira dos Produtores de Disco (ABPD), em 2000, no Brasil, a indústria fonográfica vendeu 94 milhões de CDs e DVDs, faturando R$ 891 milhões; em 2004, o número de vendas caiu para 66 milhões e o faturamento, para R$ 706 milhões; e, em 2007, a venda caiu para 31,3 milhões e o faturamento, para R$ 312,5 milhões. Para explicar essa queda, a indústria escolheu como vilão a pirataria. Primeiro, a praticada por grupos organizados com o intuito de ganhar dinheiro. E hoje, para as gravadoras, somos todos piratas, na medida em que baixamos músicas, filmes e seriados da internet, ainda que o façamos para uso individual, de fruição, e sem o intuito de ganhar dinheiro com isso.
Essa, segundo Joaquim Falcão, é uma estratégia que vem se mostrando equivocada, pois, além de não conseguir estancar a queda nas vendas, ao tentar punir seu público-alvo, a indústria fonográfica o irrita cada vez mais, com isso angariando mais pessoas para o “crime” do download. “Vemos aí claramente um sistema legal, que anteriormente protegia um business, mas que estacionou no tempo”, disse Falcão. No Brasil, a situação é ainda pior, pois as exceções ao direito de copyright previstas para fins educacionais, que existem na maioria dos países ocidentais, não são observadas por aqui. “De que adianta uma lei rigorosa que não pode ser cumprida? É inviável, por exemplo, termos um processo educacional com a pluralidade de opiniões necessária sem copiar os textos que precisam ser lidos”, opina o advogado.
O diagnóstico
Deparamo-nos, assim, todos os dias, com condutas potencialmente ilegais, que são desobediências à decisão estatal. É bom ressaltar, entretanto, que, se são condutas ilegais, não são condutas imorais, apesar das tentativas de classificá-las nessa categoria.
“Estamos todos permanentemente sob a ameaça da ilegalidade, na dependência da avaliação do guarda de trânsito, do policial civil, do policial militar, do policial federal, do fiscal de rendas, do fiscal da prefeitura, do fiscal aduaneiro, do procurador do Ministério Público, do delegado, do promotor, do defensor público, do fiscal do Ibama, do fiscal da saúde pública, do juiz, do desembargador, do corregedor, do Ministro”, acrescentou Falcão.
A partir daí, considera que é possível distinguir três características do momento brasileiro:
1. Estamos passando de um estado policialesco para um estado da ameaça potencial. Nesse contexto, “não se prendem os indivíduos, mas se fundamenta a autoridade com a ameaça. O processo legal em si é a pena – seja através de danos financeiros, profissionais, morais ou psicológicos. É, portanto, um Estado que usa a possibilidade de usar a força, o que é característico da tradição política brasileira”;
2. Esse é um contexto em que as transgressões são coletivizadas: milhões cometem os mesmos equívocos e a vontade individual não é mais um fator decisivo;
3. As trangressões perpassam todas as classes sociais, não é mais exclusividade dos pobres, mas está presente também no cotidiano dos ricos e da classe média.
Diante disso, a pergunta é: a repressão tem sido eficaz? O que se percebe é que o direito processual, com base na ação individual, tem sido incapaz de lidar com transgressões coletivizadas.
Por outro lado, apesar de a demanda reprimida ser muito alta só agora é que começam a surgir ações coletivizadas. Além disso, se observa a submissão da sociedade ao Estado, fazendo com que fiquemos, cada vez mais, todos na mão do agente do Estado de plantão, com o poder para nos deter ou nos liberar.
Alternativas
Para enfrentarmos o dilema da pretensa ilegalidade onipresente, uma alternativa é, segundo Joaquim Falcão, buscarmos caminhos para adaptarmos a burocracia à realidade. E afirma: “a justiça não se resolve só com justiça. Se o modelo do CD e do DVD ficou obsoleto, é preciso mudar este modelo de propriedade intelectual. Se 51% da população trabalha na informalidade, vamos colocá-los todos na cadeia? Não faz sentido. É preciso encontrar outras formas para trazê-los à legalidade. Devemos tratar a complexidade do mundo com leis mais complexas, que observem estas mudanças nos hábitos da sociedade. É preciso aperfeiçoar o combate à impunidade, mas isso não se faz somente com repressão”.
Isso vem sendo feito, segundo Falcão, através de um reforma silenciosa da justiça, pelos juízes jovens, que buscam saídas sem mudar a legislação. Estas estratégias de promover mudanças num contexto de permanência das leis são, sem dúvida, um avanço. Mas ainda muito insuficiente se quisermos pensar uma saída para o atual estado de permanente ilegalidade no qual, hoje, todos estamos imersos.