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Um domingo na Maré

jun
2009

A Redes de Desenvolvimento da Maré e mais 18 instituições, entre elas o Observatório de Favelas, promoveram, no último domingo, 28 de junho, no Centro de Artes da Maré, uma das Conferências Livres preparatórias da 1° Conferência Nacional de Segurança Pública (1° Conseg), que irá ocorrer em Brasília, no período de 27 a 30 de agosto.

O debate foi organizado em torno dos três eixos temáticos definidos pelo Manual da 1° Conseg: “Gestão Democrática: controle social e externo, integração e federalismo”; “Prevenção social do crime e das violências e construção da cultura de paz” e “Diretrizes para o Sistema Penitenciário”. Os moradores do Conjunto de Favelas da Maré participaram ativamente, contribuindo com idéias e experiências para propor, coletivamente, maneiras de fazer valer o direito à segurança em suas comunidades. Segundo a diretora da Redes de Desenvolvimento da Maré, Eliana Sousa Silva, a reunião foi uma ação mais qualificada das entidades locais da Maré no sentido de mobilizar os moradores em torno do conceito de segurança cidadã, Tema que,  na sua opinião, é pouco tratado no dia-a-dia dessas pessoas. “Trabalhamos  para que o morador possa ter um espaço para discutir a violência e a segurança pública, temas que estão na vida deles”, comenta. Eliana ressalta que  todas as reflexões desenvolvidas no evento serão reunidas num relatório final,  enviado à Comissão Organizadora Nacional da 1° Conseg.

A Conferência Livre contou com 185 pessoas formalmente inscritas, entre as quais se encontravam moradores  da Maré, lideranças comunitárias, ativistas de direitos humanos, pesquisadores, além do  comandante do 22. BPM, Cel. Seixas, a capitã Pricilla, que comanda o policiamento comunitário do Santa Marta, e o Cel. Seabra, que comanda as comunicações da PMERJ.

> Leia mais sobre o evento no Observatório das Favelas.

Silvia Ramos, coordenadora do Centro de Estudos de Segurança e Cidadania da Universidade Cândido Mendes, que estava lá, fala de seu entusiasmo com o sucesso do evento:

Queridos amigos,

Escrevo para fazer um relato de um dia fora do comum. Acabo de chegar da Conferência Livre da Maré, a primeira conferência livre de um bairro do Rio de Janeiro no contexto da Conseg.

Para minha surpresa, verifiquei que estavam presentes nada menos que 185 pessoas formalmente inscritas, entre moradores da Maré, lideranças comunitárias, ativistas de direitos humanos, pesquisadores, além do comandante do 22. BPM, Cel. Seixas, a capitã Pricilla, que comanda o policiamento comunitário do Santa Marta, e o Cel. Seabra, que comanda as comunicações da PMERJ. Além desses, muitos amigos da REDES e das outras entidades que convocaram a conferência livre passaram por lá o dia todo. Inclusive um grupo de franceses vindos do município da periferia de Paris, Virth-Sur-Seine, que anotavam cada frase entre boquiabertos e incrédulos.

Tudo ocorreu no Centro de Artes da Maré, o belo e grandioso espaço que Lia Rodrigues e seu grupo de dança e arte ergueram dos escombros de uma velho galpão, numa das entradas da Nova Holanda, na Maré.

As fortes emoções começaram pela manhã bem cedo, quando traficantes reagiram à presença de veículos e do forte efetivo da PM com tiros dirigidos ao local onde se realizaria a conferência. Tudo se acalmou rapidamente, quando os traficantes perceberam que não se tratava de uma invasão, mas de um debate. A tensão, contudo, perdurou por um tempo até a abertura.

Eliana Silva, da REDES, abriu os trabalhos com uma explicação da importância histórica da participação da Maré na Conferência Nacional de Segurança Pública: “A Maré vai levar suas propostas, nós queremos ter voz em Brasília”. Por isso estamos cumprindo os procedimentos de uma conferência livre, como explicou Raquel Willadino, do Observatório de Favelas. Miriam Guindani e Julita Lemgruber fizeram ótimas exposições sobre o sistema de justiça criminal, o controle externo da polícia e sublinharam a importância do encontro. O tom da abertura e a ênfase no diálogo deram o mote do dia: “Todos que estão aqui são bem vindos. Não queremos preconceitos, queremos o diálogo e vamos debater tranquilamente nossas opiniões sobre segurança pública, que é um tema que nos afeta diretamente”, disse Eliana.

Ao longo do dia o que se viu foi quase um milagre: grupos de 30 a 40 pessoas discutiam organizadissimamente pontos dos eixos temáticos e anotavam suas conclusões em grandes cartolinas. Os grupos tinham a cara da diversidade total, gente de favela, do asfalto, da cultura, da militância, da polícia, da academia.

O almoço, preparado pela famosa Galega, da Maré, arrasou, com cinco opções, que iam da carne de sol ao estrogonofe, vários tipos de feijão, cuscus, farofa e fartura nordestina total.

Bira, o fotógrafo da Escola Popular de Fotografia da Maré, me mostrava em sua câmera uma das centenas de fotos que bateu ao longo do dia: o Cel. Seabra inclinado se servindo no balcão da Galega ao lado do Robson, da Rocinha/Viva Rio e de outras liderança da Maré. Bira me disse: “Vem ver: democracia é isso”.

Na mesa de almoço em que estava o Cel. Seabra se sentaram Marcia Jacinto, que teve seu filho assassinado em 2002 e que investigou o crime por contra própria e provou que ele fora assassinado por policiais, que hoje estão presos (Marcia ganhou o prêmio Faz a Diferença do Jornal O Globo de 2009), Patrícia Oliveira, irmã do Wagner, da Candelária, da Rede Movimento Contra a Violência nas Comunidades e outras ativistas que eu não conhecia. Seabra, Seixas, Pricilla e os policiais tinham participado do mesmo grupo de debates que Márcia, Patrícia e outras 30 pessoas antes do almoço e, a despeito das diferenças, o que se viu naquele e nos outros grupos ali na Maré é que o diálogo – milagre – é possível.

O mais incrível do Rio é que essas coisas, essas cenas inesperadas, essas viradas de página se dêem exatamente na Maré, ali onde t-o-d-a-s as dificuldades, barreiras, tabus, preconceitos teriam tudo para ser maiores do que são em qualquer lugar. Ali onde é mais difícil reunir pessoas para “discutir segurança publica” do que em Copacabana, Barra ou Botafogo, com suas mil opções de locais seguros e tranquilos. Ali na Maré, onde a Conferência Livre começa com tiros e acaba com diálogos imprevisíveis e inusitados… isso também é o Rio. E isso é histórico.

Graças à coragem da Eliana e do monte de gente corajosa, criativa e ousada que ela lidera hoje no Rio de Janeiro.

Um abraço,
Silvia